Blog de Farley Rocha

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Círculo de leitura (CRÔNICA)

Foi num outro dia desses, ou melhor, foi numa daquelas noites em que se tem a nítida impressão de se estar bastante mal iluminado lá fora, a rua estava vazia quanto estavam vazios de faróis os estacionamentos; restolhos de pessoas com os braços apertados iam a passos largos como se procurassem refúgio de alguma ameaça. Som, apenas o do vento retalhado pelos cabos elétricos dos portes. Não havia nem mesmo baratas vivas ou mortas pelas calçadas e nem ratazanas passeavam pelos bueiros. A cidade toda parecia imagem de qualquer lembrança remota do afresco de um pintor desconhecido. Sair por aí, seria somente para desejá-la “boa noite”. E depois, casa.

A tv sapiava na mesma cronometragem do tic-tac da parede da sala. E fazia um friozinho incomum para um clima quente de novembro. Com a luz de todos os cômodos apagada, observava pelo basculante da cozinha a lâmpada da torre de telefonia piscando, quando se balançavam as folhas da amendoeira na rua da frente.

Não havia sono, então. Fui ler.

Entre os volumes agrupados nos ninchos do quarto de trabalho, peguei um livro cujo título tenho receio de revelar (por algum motivo que ainda desconheço). Já com a luz acesa e a tv desligada, folheei as primeiras páginas sem números e nada me chamou a atenção antes de chegar no que parecia ser o capítulo dois. Até ali a história falava de alguém, provavelmente o protagonista, mas não descrevia nem física ou psicologicamente seu personagem. Poderia ser qualquer tipo. Qualquer tipo de identidade ou personalidade. Era alguém sem rosto, sem aparência e sem características.

Capítulo dois: como se meus olhos se transmutassem em câmeras, a narrativa vai me mostrando um lugar indefinido onde, aos poucos, revela-se em uma rua. Não tem asfalto nem faixa de pedestres. Aquela e todas as outras ruas são de calçamento de pedras que de tão antigas e gastas tem aspecto arredondado. As coisas soam estranho porque parece não haver pessoas por ali; mas, estranhamente, há. A narrativa diz alguma coisa sobre vozes, mas não diz nada sobre quem as emita. Talvez risos também. Agora sim aparecem as pessoas, surgindo de esquinas e de portas que se abrem nas casas. Chegam nas janelas e outras vem dirigindo os carros que começam a preencher o espaço vazio das ruazinhas. E tudo neste ambiente esta normal agora. A narrativa segue em frente e me conduz para uma praça, onde posso desenhar mentalmente beija-flores sobre os canteiros de flores sem nome. Mais adiante há crianças jogando bolas de gude e um senhor de meia idade engraxa os sapatos de alguém que lê um jornal sem data. No parágrafo seguinte é descrito um céu sem nuvens e sem sol, com aves de penas coloridas povoando suas abóbodas. (Enquanto leio não sinto sono, porém, entre uma vírgula e outra, faço confusão se neste momento estou de fato acordado ou se sonho.) Pisco os olhos e continuo lendo, em voz baixa. Bruscamente, um corte no texto cria um abismo entre a cena da praça, com os meninos e o engraxate, e um cenário escuro que surge, descrevendo uma noite mal iluminada dentro de uma cidade tão familiar que poderia ser qualquer uma. Naquele lugar venta e quem resiste na rua, além dos vira-latas, são pessoas que caminham isoladamente e com pressa, umas com as mãos nos bolsos, outras com os braços cruzados. Não há circulação de automóveis ou qualquer ruído semelhante a vozes. Agora o personagem sem face está na sala folheando um livro cujo título não consigo ler. O personagem lê as primeiras páginas e depois da décima percebe que a narrativa construída é sobre alguém tão comum quanto os outros personagens que vão surgindo no meio de uma rua mal iluminada, aonde as pessoas andam depressa e ultrapassam umas pelas outras como se ninguém estivesse ali. Folhas secas suspendem pelo chão carregadas pelo vento. Agora a cena da história que ele lê é ilustrada no interior de uma sala, onde há uma tv ligada, um relógio na parede e um ponto de luz que brilha longe, visto através da janela da cozinha. Depois de acender a luz, o personagem pega um livro aleatoriamente na prateleira cujo título não é mencionado. Lê algumas páginas que descrevem um homem dentro da sala de casa refugiando-se do assombroso clima noturno da rua, numa cidade sem cor e mal iluminada, com este mesmo personagem pegando um livro cujo título é espantosamente igual ao do livro que eu lia naquela noite em que tinha a nítida impressão de que a cidade toda estava mal iluminada, com pessoas ligeiramente caminhando pelas ruas e o zunido do vento sonorizando as avenidas. E neste livro é descrito uma sala com uma tv, um relógio e um homem (que também lê um livro).

Na verdade, creio que este último personagem seja de fato eu, da mesma forma que agora sou constatadamente personagem desta história que você lê e, provavelmente, você também deve ser personagem de alguma história que alguém lê neste exato momento em que todas essas histórias (nossas histórias) acontecem.
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Se isto for mesmo real, é inevitável a pergunta: com quem essa narrativa começou e, o mais curioso, com quem ela terminará?

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