Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A vila


para Paulo Faria
(Embora também seja, não trata-se de um sonho, devaneio ou conto do absurdo)

Ando por uma rua erma e estreita, quase uma ruela. Por algum motivo que desconheço, só consigo ver o seu lado direito, aonde caminho margeando paredes escuras e sem janelas – dou conta de que não sei onde estou.

Antes que comece a me preocupar, encontro um automóvel do século passado, uma espécie de Brasília branca estacionada num canto. Mas não há motorista nem chave. Ao lado, percebo uma passagem no muro dando acesso a um local onde vejo casas. Na expectativa de encontrar alguém, adentro a apertada porta.

Sigo em passos lentos estudando o ambiente com a cabeça. Passo por um pequeno beco e chego no pátio do que parece ser uma vila. O piso é feito de linhas irregulares desenhadas sobre o cimento úmido. Mas por ali, ainda continuo só.

À esquerda, uma escada de corrimão de ferro leva ao segundo andar de um conjugado.  Abaixo dela, vejo dois tanques de roupa e baldes vazios espalhados perto deles. Ao redor do cortiço, há vasos de plantas, esquisitos botijões de gás e uma gaiola sem pássaro dependurada no prego em uma das paredes. Todas as casas estão trancadas e silenciosas. Decido ir bater numa das portas.

Despercebido, tropeço num triciclo abandonado no meio do pátio e caio, esborrachando-me no chão. Nisso, ouço ruídos como se batessem em latas e só depois de um tempo percebo que são estranhas gargalhadas vindas aos montes não sei de onde – zombando do meu tombo.

É quando vejo se aproximar um senhor alto e magricela, quase uma caricatura andante com espesso bigode e chapéu de pano na cabeça. Traga um cigarro e vem esbravejando injúrias com os braços.

Antes mesmo de me levantar, pergunto-o “que lugar é este?”

E ele, mal-humorado, resmunga “pergunte praquele menino, ora bolas!”

“Mas que menino?”

“Que menino... que menino... aquele que acabou de entrar no barril.”

E na hora tudo se esclarece. O senhor de bigode com quem converso é o Seu Madruga.
* * *
Quanto ao sucesso que o programa do “Chaves” ainda faz deixo para teatrólogos e sociólogos explicarem. Mas pela permanência na tv aberta de um seriado que nesse ano completa quarenta anos de existência (e 25 de exibição aqui no Brasil), acho que já pode ser tido como um pequeno fenômeno, apesar de toda a tosqueira – e também por ela.

Roberto Gómez Bolaños, criador e protagonista da mexicana saga do menino órfão, escreveu um tipo de humor que talvez nem ele fizesse ideia do que seria, e de algum modo o imprimiu na identidade de várias gerações, tanto na minha quanto na sua. Seja lá sobre o que rimos (ou não rimos), parece possuir uma originalidade que o longo do tempo vai conferindo. Tanto que os bordões, os trejeitos e os clichês, de tão reprisados, já são meio que de domínio público; e estranho seria ligar a televisão e não vê-los mais como sempre vimos. Mais estranho ainda é saber que a infância de hoje cresce assistindo com a mesma audiência os mesmos episódios que a minha infância assistia há 20 anos (isso seria bizarro, se não fosse cômico).

Por isso, sem pretensão de polêmica, divago: se Shakespeare nos deixou Otelo e Hamlet, Bolaños com a sua peculiar criatividade nos deixará a turma inteira do Chaves (e a do Chapolin Colorado).

8 comentários:

Liberator Neto disse...

Bolaños é um gênio não-reconhecido (não digo em termos de popularidade, mas do valor que dão a sua obra). Muito bom, tua visão é muito além do pensamento mais comum entre as pessoas.

Fellippe disse...

Quando li sobre os tanques e baldes me liguei na hora sobre qual vila se tratava, e voltei correndo para ler de novo, do começo, agora sim visualizando o cenário correto.

Coincidência, os Seminovos hoje lançaram uma música nova chamada "Florinda". Ouviste?

José Fernandes disse...

Que fantástico! Um trabalho diferente de sua linha de escrita, pelo que acompanho até então. Ficou muito bom, mesmo. Um conto, no início, com ar de algo surreal, uma pitada forte de mistério e... de repente, dá de cara com Seu Madruga! Foi ótimo. Parabéns pela criatividade. Abração!

Humberto Dib disse...

Gostei da forma que vc foi levando o texto, isso é criatividade mesmo!
Um grande abraço desde Argentina.
HD

N. Rodrigues disse...

E na hora tudo se esclarece. O senhor de bigode com quem converso é o Seu Madruga.
* * *
risos... :)

lisebe disse...

Muy interesante el relato, eso de preguntarle al gato cuando se mete en el barril y el hombre alto con sombrero y bigote en esa calle oscura.. "me ha hecho pensar en lo oscura que está la situación actual y que no sabemos a quien recurrir,a por respuestas...

Un saludo Farley

Ailton Augusto disse...

É um relato bem construído e o tema que você levanta é realmente intrigante: o que explica a permanência do "Chaves" por tanto tempo no ar? Certamente é mais do que o riso que as situações nos provocam e não creio que possamos explicar com muita facilidade. Abraço!

Anônimo disse...

Roberto Gomez Bolaños, Chespirito, com certeza é o maior ícone de uma marginalizada geração Latina ofuscada pelo grande império capitalista vindo do Norte.
Se por um lado eles contavam com Superman, Batman, Ultraman, Spectreman e outros "man"; a gente podia contar com o simplório Chapolin Colorado.