Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Autocrônica

Acima dos copos e garrafas de cerveja, entre os jatos pendentes das luminárias, através dos perfumes e fumaça rente às mesas, um olhar se lança penetrando nuvens de vozes e risos pelo bar. De um lado, avista uma mulher sozinha que segura um drink, sentada abaixo do quadro da moça em traços de solidão cubista. Ambas fumam – a do drink e a do quadro.

No lado oposto, avista grupos brindando qualquer motivo com doses de tequila e St. Remy. Entre eles, um casal pós-puberdade com narizes e olhos avermelhados se beija – ele, usando gorro, barba e piercing, parece um lenhador pop; ela, com tênis furados e estrelinha tatuada no pescoço, parece apaixonada...

(...cenário pouco provável pra esta crônica, já que o olhar que cruza não vê nenhum quadro, copos ou casais.)

Passos estalam pelas margens da avenida. Prédios engolindo o céu, os pombos e a luz do sol. Qualquer das direções são resumidas num empilhado desconexo de vitrines, ônibus, concreto e gente – justapostos em meio ao pó e buzinas. Pelas ruas, CO2 consome todos os organismos vivos, combustível fóssil pelas narinas da metrópole.

Na paralela, milhares de outros passos pisam duros e se vão, sem nem guardarem lembranças dos que vêm...

(...cenário nada provável pra esta tentativa de crônica, já que os pés tampouco andam por ali.)

Na planície árida que se estende à frente, um deserto parece não possuir fim. Raros cactos e plantas ásperas pontilham de verde o solo aonde tudo é ocre. Não há dunas ou vento ou escorpiões. Longe, pedregulhos refletem na sombra meia dúzia de caricaturas milenares – que talvez sejam só miragens. Não há oásis nem sinal de caravanas perdidas. Ao norte, um avião distante deixa um facho melancólico no ar e se vai em câmera lenta enquanto some no horizonte, como nave fantasma zanzando sobre mares de areia e vapor...

(...cenário o mais improvável pra esta ou qualquer outra crônica, já que desertos imaginários são bem mais belos do que esse.)

Em algum minúsculo ponto insignificante do planeta, alguém se debruça à escrivaninha, entre xícaras, celular, moedas e revistas tentando construir aventuras que jamais viveu. E pela vaga ilusão de obter qualquer fração de sentido nisso, se esforça, talvez em vão, curvado sobre um papel de rascunho amassado e uma caneta esferográfica velha, a mesma com a qual desmente suas próprias mentiras e borra de preto essas linhas mal tracejadas...

(... e esse parece ser o único cenário provável pra esta crônica que, nem bem começou, já chegou ao fim.)

3 comentários:

Fanzine Episódio Cultural disse...

A ACADEMIA MACHADENSE DE LETRAS (Machado-MG) comunica que estão abertas as inscrições para o VIII Concurso Plínio Motta de Poesias, do ano 2011.
Entrem em contato para adquirir o Regulamento:
a/c Carlos Roberto machadocultural@gmail.com
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ESTE CONCURSO ESTÁ ABERTO A TODOS!

Fellippe disse...

"...chega a fingir que é dor a dor que deveras sente..."

Rosa Mattos disse...

Boa sacada!

A crônica já vai pegando o leitor pelo pé logo na largada, com este título que se volta pra ele mesmo, exatamente como é a intenção do texto. E numa virada de pescoço, o leitor que também escreve lê isso que você escreveu, se volta pra ele mesmo e pensa: "cara, que ótimo mesmo!"