Há algo inesperado que sempre ocorre com qualquer homem. Mas por mais simples que seja, por uma questão natural quase nenhum consegue compreender claramente e imediatamente o porquê que isso acontece. E quando acontece, geralmente enrubescem o semblante e fingem não dar atenção ao que acabam de sentir. Mentem, ao não admitir que algo se modifica em seu íntimo. Mas quando respiram fundo e olham vagamente para o lado é porque os mistérios do mundo começam a fazer sentido, sinal de que uma coisa nova acaba de se realizar.
Assim ocorreu com Bertrando, o moço simpático que morava com os irmãos na casa dos pais, nos arredores da Praça Cira Rosa. Era um rapaz estudioso e trabalhador, durante o dia ralava como freelancer em editoração gráfica para uma gráfica de impressos da cidade e à noite estudava. Fazia faculdade de Publicidade numa cidade vizinha e pensava em montar uma agência depois que se formasse. Tinha sonhos e era esforçado. Toda noite, quando Bertrando chegava da aula, saltava da van sempre no mesmo ponto e caminhava em direção a sua casa. Nisso era sempre observado por olhos que nunca cansavam de espreitá-lo. Mas ele nunca notara. Bertrando não era triste, porém sua cabeça baixa o fazia parecer. E sobre isso ele não conseguia compreender muito bem.
José Acácio, conhecido nos seus lados apenas como Zé, esse sim era triste. Morava sozinho, depois de passar uma infância fantasiosa na roça de onde vinha. Pagava cento e cinqüenta reais por um quarto, cozinha e banheiro num segundo andar na Major Pereira, refúgio que ficou extenso demais após a partida da sua mulher. Zé era relojoeiro, herdou do bisavô a profissão. Quando criança, o seu entretenimento para passar o tempo era montar engrenagens e encaixar pinos. Mas Zé só trabalhava com reparos de relógios de igreja, o que fazia para se manter. Sempre que ia dormir, tinha os mesmos pensamentos incompreendidos: queria ser músico, hoje nem possuía mais seu violão; queria conviver com artistas, hoje vivia escalando torres emolduradas por santos e sinos ajustando ponteiros; queria ser pai, ficou viúvo antes disso; queria manter suas memórias mais antigas, hoje, após os trinta, ainda não se habituava à verdade do tempo. Para evitar seus fantasmas, Zé saia todas as noites para beber umas no Centro.
No mesmo centro em que Adel não freqüentava. Este era morador da comunidade do Morro do Waltair. Quando completou vinte e cinco anos veio de algum lugar do Espírito Santo para cá. O motivo que o trouxe ninguém chegou a saber de fato. Adel trabalhava com pintura de paredes e nos finais de semana era prestativo ajudando a vizinhança a levantar barracos, consertar telhados e vazamentos, trocar encanamento de esgoto e remendar rachaduras nas paredes... Quando podia, ensinava os pivetes a ler e escrever e dava uma força na coordenação da Associação Comunitária. Para complementar sua renda, Adel passava uma pequena quantidade de muamba para alguns consumidores da cidade baixa. Apesar de possuir uma profissão e de ser bem quisto no morro, suas transações ilícitas às vezes acabava afastando algumas pessoas de seu convívio, o que também, provavelmente, não o permitia conquistar nem mesmo uma namorada que o valorizasse, ou no muito uma paquera. Apenas vivia o dia, seguido pelo consecutivo, com pequenas doses quotidianas de melancolia. Adel ficava a se conter dos questionamentos para não se chatear.
Numa noite, quando Zé Acácio passava pela Praça Cira Rosa ao voltar do Morro do Waltair, ultrapassou frente a Bertrando, que não chegou a vê-lo (estava com a cabeça baixa), quando acabara de saltar da van que retornava da faculdade. No mesmo instante Zé se surpreendeu ao ouvir um “boa noite” soado pela voz serena de uma moça que também havia saltado da mesma van e a quem ele nunca havia reparado na cidade. Bertrando seguiu para casa, mas neste dia percebeu o olhar que sempre o vigiava, quando por acaso olhou em direção à lanchonete e viu que uma garçonete o olhava, e sorria de um jeito puro. Adel, depois que Zé Acácio saiu de sua casa com a mercadoria nos bolsos, ficou pensando no que havia dito o seu cliente de muamba, sobre a moça do Centro que, de forma interessada, havia pedido informações suas ao Zé horas antes (informações pessoais, e não comerciais).
Bertrando, Zé e Adel, mesmo não partilhando do mesmo universo entre si, possuíam algo em comum quando cada um chegou em suas casas e pensaram cada qual nas respectivas moças que naquela noite os havia prendido a atenção. Durante os instantes de introspecção não sorriram, mas também não estavam mais tristes ou melancólicos como de costume. Somente respiraram fundo e olharam daquele jeito vago para o lado como se alguma mudança lhes houvesse ocorrido.
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Naquele momento, sentiram que os mistérios do mundo começariam a fazer sentido para eles.
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