Já não cabia-se mais em sua cama, da mesma forma que não cabia-se mais em seu próprio corpo. Gostaria de romper-se em qualquer outro sentimento e por dali em diante seguir passos que nunca havia dado antes por essas bandas: andar tranquilo, ver e viver tudo sem nenhum senão. Rolava na cama em voltas tão irregulares quanto às linhas tortas de sua camiseta amarrotada. Que estava também suada. Ardia-se as costas no quarto mal iluminado e sem ventilador e sua cabeça fervia. Por isso se levantou até a janela. Abriu os braços ao retirar a camiseta úmida e deixou que a brisa fresca entre o vapor das dez da noite refrigerasse as partículas de suor nos pelos negros das axilas. Nesse sentido procurou não pensar em nada. Fechou os olhos e no mesmo momento desejou a total inconsciência. Ao menos que fosse por alguns instantes...
Havia sob si todas as luzes da cidade. Esta mesma que quando chegou parou primeiro os olhos na paisagem arquitetônica da igreja matriz, através do vidro do ônibus. Encantou-se e ficou por aqui em busca da descoberta de um outro lugar (ou de simplesmente mais um).
Dizia que vinha de longe e conversava muito. Contudo, por algum motivo não identificava sua origem de fato, a não ser pela abertura de seu sotaque denunciando que ele era do nordeste. Ou do sertão ou da cidade, seu traço copiava índio. Assim dizia como sua avó era, índia velha e curandeira. E ele rodou pelo mundo de forma que a terra fria o agradou.
Mas desde que cruzou as montanhas do leste e estacionou sua morada por aqui, permanecia insólito em sua dimensão de convivência. Possuía já vários conhecidos, mas nenhuma pessoa que lhe confiasse profunda amizade. Afinal, estranho que era. Apenas.
Embora os demais o vissem como um anônimo desocupado, ele precisava sobreviver e para tanto o trabalho não lhe cabia de mal grado. Não tinha formação básica completa, o que não o impedia de despontar em algumas habilidades: na construção civil cabia-lhe qualquer parte; poderia também lidar na lavoura ao mesmo pique que entre as mesas de um bar, fazendo ponta de garçom quando apertava no mês. Se estava à toa, era por opção, pois, segundo sua cultura de berço, via o descanso como sagrada recompensa pelo esforço.
Gostava muito de contar suas histórias. Sentia-se o centro e ele próprio como o grande protagonista de suas andanças. Impunha emoção no tom de cada palavra narrada e derriçava roteiros vividos em cenários diversos, com cactos e sol sobre o solo árido de sua gente, subúrbios e butequins por onde frequentou, atividades e serviços que já executou e, sobretudo, falava sobre pessoas que já conhecera, suas quadjuvantes, suas mulheres, sua família, seus amigos e inimigos, suas porradarias e frustrações. E todas, pessoas distantes que ninguém por aqui iria algum dia conhecer. Há 80 anos atrás, seria talvez um cangaceiro de Lampião, de repleto o repertório de experiências.
Mentiras ou verdades, suas narrativas concluíam em si um ligeiro mistério em torno de sua aparência, embora possuísse uma personalidade autêntica, inquietante e não pouco extremista. Dado por cada discurso seu, de certo todos o olhavam um pouco mais receosamente: “quem será ele?”, “o que quer por aqui?”.
Sórdido então se tornava seu próprio olhar sobre o mundo de fora em relação ao de dentro: “quem sou eu?”, “o que espero de mim?”.
... Por isso nesta noite sua cabeça girava entorpecidamente, e seus braços abertos conduziam as mãos a apagar a luz do quarto quando resolveu ir dormir. No sono sonhou extravagâncias de um lugar em que sua vida seria apenas mais uma, comum, sem manifestar às escondidas opiniões a seu respeito. Um lugar em que caminharia olhando no horizonte, sem receio também de olhar nos olhos. Entre todos os outros, um cidadão comum.
No dia seguinte era domingo. Decidiu descer o morro e foi ao melhor restaurante da cidade. Pediu ao garçom uma cerveja gelada antes do almoço e de olhos e ombros erguidos pensou: “não devo nada a ninguém!”.
*
E ele estava mesmo certo.
Um comentário:
Cidadão Quem ?
Ja não cabia mais nas mãos,
os retratos envelhecidos.
da calçada fria,
tempo por ai passando ...
" - Oi! Estou aqui ..."
" - Posso ser alguem ? ".
Hoje,de calça fina e linho porpurina,
grife de luxo ...
" - o veredicto do inquérito é ...
" - está por encerrado".
"não devo nada a nimguém"
" Paulo Erenio "
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