Primeiro fato: possuo vinte e quatro horas para escrever uma crônica, contando com o tempo que gastarei para editá-la, isto é, enxugá-la, apará-la, lapidá-la e, por final, publicá-la;
Segundo fato (e um pequeno porém): não tenho ao alcance das minhas mãos imaginárias nenhum objeto abstrato que seja ao menos semelhante a um tema;
Terceiro fato: em meu domínio tenho um caderno espiral com as folhas brancas e sem linhas, uma caneta esferográfica preta ponta 07 e o barulho da chuva no telhado. E, não obstante, uma condição a vista: a de “ter” que escrever.
De onde estou posso ver um livro do Drummond, a dois ou três passos da minha mesa. Na capa há um desenho em alto-relevo com o contorno da face do poeta. E por trás dos meus óculos procuro mirar Drummond por trás dos seus óculos. Não vejo nada além do brilho sinuoso de sua careca. Talvez tenha vontade de me levantar e buscar o livro, folheá-lo a fim de me divagar em busca de um tema. Quem sabe assim? Mas não o faço. Às vezes seus textos me assustam, confesso (pela grandeza). Ainda mais em noites úmidas como esta.
E me lembro da chuva caindo. Lembro-me também das cores que povoam as calçadas entre os carros e placas durante o dia movimentado da cidade. Armações arredondadas de nylon e arame dos guarda-chuvas, guardando por debaixo seus donos. A chuva há de parar um dia, mesmo que isso custe o cinza monótono voltando às ruas. Enquanto ela continua, vez ou outra se espalha, e é nesta hora que me distraio, quando observo a cara em que ficam as pessoas ao perceberem que os pingos cessaram, mas continuam ostentando seus guarda-chuvas.
Chuva que vem cobrindo o céu de todo o país, banhando de nuvens carregadas o nosso pré-verão. Todo o país exceto o último domingo do Rio de Janeiro, que esteve repercutindo o eco da voz loura de Madonna por toda a cidade em seu show. Ela, aliás, seria por si só um tema para uma crônica. Não sobre sua idade ou sobre suas pernas, mas sobre o que emoldura sua trajetória de diva pop star e de sonhos, com ela, eróticos. Ao seu redor, seria interessante falar até da súbita vontade de urinar que, provavelmente, arroubam seus fãs em histeria ao vê-la no palco. Mas e banheiro para tantos?
Soube que em Amsterdã paga-se multa se for pego mijando na rua ou em qualquer outro local público. Por isso, para a moçada que sai bêbada de cerveja dos pub’s emarolados, foram instalados mictórios gigantes em formato de caracol para os rapazes, nas mediações dos parques e das praças. Assim, a cidade fica limpa e com aspecto de bem-comportada, como podemos ver pela internet.
E esta mesma internet que conecta Holanda a mim e ao mundo simultaneamente, prevalece no intervalo das distâncias, encurtando tempo, trazendo uma avalanche de coisas tantas a cada instante. Globalização talvez seja isso: informação e conectividade. Mas até que ponto a rede é responsável por ela? Ou, até que ponto nós estamos diretamente inseridos na globalização?
É bem verdade que neste momento estou dentro (ou no meio) de um lugar que, de certa forma, ainda guarda a ingenuidade do campo de outrora, em meio à beleza do verde escuro dos vales ao sol a pino nos dias claros, e do vermelho róseo das nuvens no pôr-do-sol dos outonos. Um lugarejo espalhado por todos os outros na miscelânea de montanhas, no limiar de cada cordilheira que me abrange. Lugar em que me instalo agora, ainda com a caneta na mão e o caderno também, pensando na globalização, na Madonna e numa música do Nouvelle Vague que não cheguei a citar aqui.
Mas o tema realmente não veio e parece que não virá. Por isso deixo, antes de partir, algumas reticências para mostrar que voltarei a escrever uma crônica, mas não agora. Não hoje...
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Então, até semana que vem.
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