Instante do pós-vôo exato
Veio de cima a águia solta pelo espaço e mergulhou profundo no infinito do ar entre o céu e o chão e meio girava meio aprumava asas intactas qual nave espacial em fuga a captura perto e longe os olhos mirando era gavião preto e branco plumas penas longas patas viradas para trás mas apostos bico furando a superfície do atrito do nada entre aspas o tudo e foi mergulhando rasando e próximo chegando perto as patas virando-se à frente um golpe de peito no vento garras e unhas cravadas o frango novo pingando o primeiro sangue o céu levando o pássaro de asas soltas levando asas ave que não mais voa... Nem nunca voará.
No terreiro, lá embaixo, o galo cantava como se um motivo o despertasse. E cantou longamente sob o sol enquanto as galinhas sonsas ciscavam a areia...
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O clow do chafariz
Segue aventureiro com seus passos lentos e não se importa. Olha o céu: é azul. Olha a janela do prédio sob o céu: uma garotinha o acena. Olha a árvore sob o prédio: o vento leve nas folhagens novas. Olha seu chão por onde pisa: o mesmo pó que encarde suas roupas, e anda. Anda solto por uma metrópole que não existe, mas que abriga todas as suas vistas, seu sorriso ébrio melancólico e seu mundo. Durante o dia seu vagar é iluminado pelas verdades sólidas que o cercam e acompanham. Mas o crepúsculo chega e na noite seu solo áspero o acomoda. Nesta hora nada sugere sua triste solidão.
Ao redor do chafariz desativado se ajeita. A brisa o traz a fúria de outros tempos e com ela vem também seu sono, para depois acalmá-lo. Imóvel continua a vagar. Vê o céu: agora cintilado. Vê a árvore: agora paralisada nos galhos. Vê a janela do prédio: a garotinha já não mais o acena, mas sorri.
E neste instante ele deve se sentir completo. Porque em seu sono contente ele agora sonha.
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Paraíso
Do alto Dona Edina se avista um mundo à frente. Riozinho, de longe, porque de perto é riozão, lá por baixo curvando cego entre as árvores vai embora. Peixe se bem que não, mas banho dá. A água é fria tem época e tem que não. E mais pra lá, de fora a fora, dá pra ver que o olho perde o horizonte. É a muralha de rocha daqui. Dá pra reparar que ela some. Com seus altos e baixos, lá no centro a Pedra Menina, e pra cima ela sobe como vê. Bonito é também na noite, com os grilos fazendo a vez da música. A lua nascente, por trás daquele alto, clareia e vem. Quando acaba de chegar é difícil saber que noite ou que dia. E se estiver muito frio, no amanhã nasce de geada. O vale todo branquinho. É quase um campo de algodão. Aí é bom sinal que vai dar sol. E sol no meio dessa beleza toda é bonito. Faz os olhos nem piscarem.
Lugar assim parece riscado no papel.
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1943
Os sinos. No destampado da colina os arbustos parecem sonoros. Não, é a igreja. E São Sebastião já estava lá com seus estigmas. Junto ao badalar, a vista alcança a maça cinzenta subindo longe. Nuvens baixas em dia claro. Não, é o trem. Serpenteia-se e contorce, com seu cavalo vapor rangendo ferro a ferro sobre os trilhos. A charrete ao pé do morro se faz atenta. O senhor de chapéu de lebre e sapatos pretos entra num estabelecimento. Pede uma dose e esse é o bar da vez. Não, é a venda do Jovelino Bento. O baralho na mesa, a goiabada no balcão, o pão no cesto. Quase um armazém.
As ruas de solo vermelho guardam impressos os vestígios de passageiras pegadas na lama oculta. São vagares tantos que não se vêem mais por elas. Mas o amarelo envelhecido dos casarões antigos abriga as sombras todas em seu contorno. Mesmo que não pareça. A qualquer canto, as casas com a porta aberta podem não ter janta pronta a esta hora. Mas sempre têm um café na mesa. Como se tudo coubesse numa pequena realidade em preto e branco.
E nisso as imagens imaginárias constroem em mim lembranças que jamais vivi, quando olho a fotografia antiga da cidade, de 1943.
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Olhar paralelo (o olhar das calçadas)
Luzes escandalizadas dos faróis sempre apostos e as calçadas sempre lá, guiando fatos e mais. Suas esquinas semeiam lendas passageiras, ainda quando tarde, madrugada pra lá. Em suas margens retas rondando o Centro, reflexos femininos nos espelhos que parecem imitar as vitrines. E as lojas iluminam cá fora com a mesma intensidade que o seu espaço privado. Spot’s alvejam os manequins, mas sem perderem de vista a mira dos transeuntes. Nas calçadas. As mesmas que conduzem os punks remanescentes até a escadaria da igreja. E por ali tornam-se góticas as vias, sob o voar cego dos morcegos.
***
Em deslize contínuo pelas calçadas os passos atropelam música e calcanhares. Abaixo da marquise é o violão. Sons também da mesma forma que longe dali, onde o vagar é mais tranqüilo, no sigilo de janelas escuras, mas suspeitas. Daí, as voltas de suas retas constituem cenas de diversas maneiras, mescladas a pequenos segredos. Quando as calçadas rompem-se por cada qual, de lá se aprofundam em labirintos urbanos de todos nós, entre nossos medos e desejos.E para qualquer lado as calçadas explodem em horizontes sem fim que inevitavelmente terminam em cada quarteirão. Mas continuam de alguma forma, e sempre. Caminhar.
Em deslize contínuo pelas calçadas os passos atropelam música e calcanhares. Abaixo da marquise é o violão. Sons também da mesma forma que longe dali, onde o vagar é mais tranqüilo, no sigilo de janelas escuras, mas suspeitas. Daí, as voltas de suas retas constituem cenas de diversas maneiras, mescladas a pequenos segredos. Quando as calçadas rompem-se por cada qual, de lá se aprofundam em labirintos urbanos de todos nós, entre nossos medos e desejos.E para qualquer lado as calçadas explodem em horizontes sem fim que inevitavelmente terminam em cada quarteirão. Mas continuam de alguma forma, e sempre. Caminhar.
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