Blog de Farley Rocha

sábado, 8 de novembro de 2008

O correspondente (CRÔNICA)

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Ano 2075. Espera Feliz possui uma nuvem cor de chumbo sob todo o céu acima. Assim como todas as outras cidades de países tropicais como o Brasil. Trata-se de uma capa, uma espécie de proteção de vapor artificial desenvolvida para minimizar os efeitos dos raios ultravioletas em localidades de povoamento. E sobre isto, pelas ruas, repartições públicas e salas-de-espera sempre têm folder’s das campanhas do Ministério da Saúde alertando para o uso do protetor solar. Mas nem por isso as pessoas deixam de sair. Colocam-se em seus trajes diurnos ou entram em seus locomotores (uma espécie de automóvel levitante) e se vão pelas calçadas ou pelas vias espaço-motorizadas. Visitam as lojas, galerias e os shopping’s suspensos. Sobem prédios e passeiam.

A cidade mudou muito depois do Tratado da União Sul-americana, que na verdade beneficiou a todo o continente, embora a crise da desigualdade social ainda permaneça em muitos lugares. Em 5 décadas outras ruas e bairros foram criados por aqui. Agora, onde havia o Morro da Canoa, está tudo transformado: há o morro, mas não o mesmo. Vários condomínios de luxo foram construídos ali, depois da demolição da Favela Canoa, transferida para um conjunto habitacional próximo ao trevo de Carangola. Já no trevo de chegada da BR 482 – Espírito Santo/Minas, foi erguido um viaduto sobrevoando as mediações acima da cidade. À altura do centro, sobre a Praça Cira Rosa de Assis, ele é cruzado por várias outras pistas, dando acesso a outros pontos. Aliás, todo o perímetro urbano é recortado por esta malha sobterrestre, interligada à superfície de quando em quando por elevadores magnéticos. Por essas vias transitam as conduções de contato (as de pneus de borracha) e as de propulsão (carros voadores). Todos os veículos se locomovem neste espaço aéreo feito de cimento e aço sobre a cidade, que agora guarda suas avenidas jardinadas somente para as pessoas a pé. Seus administradores públicos tiveram bom senso ao longo do tempo e mantiveram conservados os casarões em estilo Art Dèco, do início do século XX. Por isso, hoje a cidade recebe o título de Patrimônio Histórico Brasileiro e possui como bem tombado a Avenida Fioravante Padula e as redondezas da Praça da Bandeira.

A população do município já ultrapassa os seiscentos mil. Os edifícios e blocos habitacionais foram se estendendo por toda a Vargem Alegre (antes zona rural) até bem próximo ao Vale do Paraíso. Nesse mesmo ritmo é que foi se formando uma pequena megalópole entre Caiana e Caparaó. E já existe um projeto ridículo na Câmara de Vereadores para se começar a erguer uma cidade subterrânea, devido a contingência populacional. Mas não passa de superfaturamento (o que ainda não deixou de existir).

Durante o dia, todos trabalham. Há fábricas de transistores e placas eletrônicas para computadores por toda a parte. Restaurantes e lanchonetes. Contudo, apesar do movimento, a cidade é limpa, já que a ONU proibiu em todo o planeta o uso de embalagens plásticas. Os mercados estão sempre cheios, assim como as casas de água (lugares feito os café’s ou bistrot’s, onde servem água de vários tipos e origem, como uma especiaria). A partir das seis da tarde encerra-se o expediente e a noite chega com todas as suas luzes de neon. O Mirante da Serra é o mais brilhante. Foram construídos chalés e pousadas de vidro e alumínio por toda a montanha, e no topo, a estátua iluminada do prefeito revolucionário das eleições de 32 (deste século), cujo nome injustamente se perdeu no tempo. Pelos quarteirões há bares, boates, cinemas e teatros. Cassinos e pontos permitidos ao consumo de drogas. Capelas e templos de meditação. A semana toda é agitada e a madrugada vira. Já nos sábados e domingos, muitos preferem descansar, outros vão para o Monte Caparaó (serra do antigo Parque Nacional do Caparaó, extinto há anos) se entreter nos observatórios da CEPEGE (Centro de Pesquisas Gerais do Brasil). Foram instalados vários ao entorno rochoso de todo o Pico da Bandeira, utilizando as estruturas abandonadas, desde os anos 50, do antigo projeto da UMUH (União Mundial da Humanidade), elaborado para a construção de uma cidade suspensa sobre os mais de 2.500 metros de altitude do Pico, acaso as calotas polares continuassem a degelar devido ao aquecimento global (a previsão era de que o mar, até 2040, alcançasse 90% do estado Capixaba; o que não chegou a acontecer de fato).

Quanto às finanças e a renda per capita, agora a economia daqui é baseada na comercialização de imóveis e no mercado financeiro, entre outras pequenas e grandes empresas de tecnologia de softwears. A agricultura já não há faz muitas décadas. E também não há tanta natureza igual antes, como mostram as imagens digitalizadas do antigo acervo da Biblioteca Municipal. Mas a cidade ainda possui o mesmo nome, enquanto não mudam para Feliz Espera (o primeiro nome de há quase 200 anos atrás), como prevê o Projeto de Lei de um político maluco que pretende trazer o auge do turismo novamente à região, depois que houve o seu declínio causado pela extinção de várias espécies nativas da nossa fauna e flora.

No mais, enquanto isso por aqui os anos continuam a transcorrer naturalmente, acompanhados nesta mesma ordem pelos calendários eletrônicos ao longo de todas as calçadas.
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Cidadão “X”, correspondente do futuro para o ano de 2008, sábado, 8 de novembro, a quem por ventura vier a ler esta carta.
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Crédito da imagem: Leoni (banda Sinopse Rock)

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