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Um pouco mais além de uma necessidade criada, para muitos é quase uma chave que vai abrindo a portas para indefinidas dimensões (em potencial para os viajandãos da cidade) perdidas ou desprendidas por qualquer canto ou esquina. Junto aos passos cotidianos, pela audição adentram sorrateiramente cores, aromas e até imagens tão sensatas quanto loucas, pois existe em si, de certo modo, um imaginário artificial e à mesma medida completo, por isso poético, na sensação despertada pelo som invisível de um micro-mundo com saídas para fones de ouvido. Nesses dias modernos por toda parte, lembro-me do “bom e velho” mp3.
Percorrer a rua José Grillo ponta a ponta, por trás dos óculos escuros frente ao sol nos pára-brisas que vêm, toma-se uma dimensão muito mais excêntrica sob o som de “There There”, do Radiohead, exalando do fone. A introdução dos tambores, seguida das pequenas rajadas de riff’s da guitarra e a salpicada dos efeitos eletrônicos, no final o quebra da bateria: é o mesmo que estar carregando um show inteiro da banda dentro do bolso e se sentir um privilegiado de ser o único, entre as pessoas pela calçada, a poder ouvir com nitidez e extravagância esse momento. Da mesma forma que seria passar ao lado do Estádio Municipal rumo ao Pontilhão de Ferro, num fim de semana dourado, ouvindo “Creep”.
Os quiosques pelo Calçadão soariam em uma sensação mais psicodélica se no player rolasse um outro arquivo. Seria então um “Abbey Road” dos Beatles, ao avistar a faixa de pedestres cruzando o meio da avenida. Não podendo enxergar os rapazes de Liverpool, claro, mas as sombras de seus passos poderiam facilmente ser ouvidas. Sob o arvoredo do Jardim Central, ao pé do morro da Matriz, algo colorido manifestaria mais intenso debaixo de qualquer música do The Smiths, talvez devido ao cenário de flores e escadas, ou pelo olhar triste da imagem de São Sebastião na torre do sino a nos espreitar.
Em curtas temporadas de temperaturas altas pela redondeza urbana, o vagar nas estreitas calçadas ensolaradas da Fioravante Padula tomaria ares de um passeio indie pela cidade, ouvindo de forma privativa “Rehab”: ao passar às margens das butiques, desviando-se entre pessoas e postes, tem-se sempre a sensação de que vai dar de cara com Amy (daquele jeito) Winehouse saindo de alguma loja ou estacionando um carro na vaga ao lado, por baixo de sua cabeleira.
No coração da cidade, um blues em formato The Doors ilustraria de forma cadente o ressonar dos sonhadores embriagados, pelos bancos da Rodoviária. Em paradoxo, a melodia doce e inquietante da canção “Anarquia” de 1968, do disco experimental do menino Ronnie Von, daria mais leveza e euforia ao resto do mundo, ou pelo menos junto às palmeiras frente à Praça Cira Rosa de Assis.
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E neste enfim, seriam de todo sons pincelando tardes e muros, rostos e asfalto em dia azul. Sem buzinas, vozes alheias ou qualquer ruído que desaperceba. Apenas imagem plástica e som particular surgidos de uma espécie de apetrecho místico, que possui o poder mágico de dar a qualquer lugar por qual passamos uma trilha sonora, no mínimo, inusitada à paisagem aos nossos olhos.
E neste enfim, seriam de todo sons pincelando tardes e muros, rostos e asfalto em dia azul. Sem buzinas, vozes alheias ou qualquer ruído que desaperceba. Apenas imagem plástica e som particular surgidos de uma espécie de apetrecho místico, que possui o poder mágico de dar a qualquer lugar por qual passamos uma trilha sonora, no mínimo, inusitada à paisagem aos nossos olhos.
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Crédito da imagem: Eder Herdy
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