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Por todos os lugares da cidade começando a se acender incandescentemente, após o entardecer de uma semana comum, vozes vão preenchendo os espaços e por cada lado um ângulo diferente é percebido por quem caminha sobre ela. As impressões de qualquer detalhe urbano vão se movimentando em ondas sonoras entre os outros ruídos que ocupam as ruas do centro, as transversais e suas esquinas, até o extremo da parte velha da cidade. É neste momento que tudo acontece sobre nós e entre nós, por todos os cantos, pelas portas abertas, pelas praças, prédios, portões e bares.
E mergulhando dentro dessa cidade perdida de todas as metrópoles:
... ao relento da noite caindo, a vizinhança se espanta mas finge não acontecer. São gritos espalhados entre xingamentos, choro de mulher e criança. Um instante de silêncio e em seguida tudo volta quase ao normal:
“– Aqui! Vem cá um pouquinho. Quero trocar uma idéia com você. Vem cá, rapaz! Precisa chorar não! Ô, rapaz, eu já te falei que quando o pai chegar meio zoado assim em casa é pra você sair fora, rapaz. Você vai ficar aí em casa de bobeira fazendo o quê? Se você viu que o pai tá com aquele bafo, ó, pipa! Vaza fora. Porra! Quando eu tinha a sua idade, quando eu via que o pai tava desse jeito, eu pegava a minha bolinha e ia pro campinho, cara. Ou então pegava os caminhãozinho e ia lá pra rua brincar com os meninos da Maria. Agora você, o dia que você vê ele assim de novo, você pega e vai lá pra casa da tia, moleque. Fica por lá umas duas horas e depois você volta. Aí ele já vai ter apagado no quarto. É foda... a mãe é que sofre com isso... Aqui, agora pára de chorar porque homem não chora, não. Fica aqui fora um pouquinho e veste essa camisa porque tá frio –”
... aquém e além por esta cidade que continua a anoitecer lentamente, há vestígios de outros murmúrios perambulantes para quem permanece sob a proteção das paredes de suas casas. Já para quem percorre as avenidas, o cruzamento e a faixa de pedestres, o murmúrio não há, mas sim o alto-falante escapulindo-se por alguma porta, professando a tradição latente pelos séculos que não se apagam nem mesmo por aqui:
“– Jesus salvará a todos!!! Nada mais há na face da terra do que o homem minúsculo e frágil diante da grandeza do Senhor. Por isso, cada ser humano um dia ajoelhará perante o Pai e pedirá perdão por todos os seus pecados. E Deus, sobre toda a Sua magnitude e onipotência, erguerá Suas mãos sobre a cabeça de cada um e derramará seu perdão banhado em amor e o Pai e o Filho nos levarão à alteza dos céus guindo-nos pelo Espírito Santo! Glória a Deus, irmãos!!! E vivas ao Senhor Celestial!!! Viva!!! Viva!!! Viva!!! (...) Satanás um dia disse: Jesus!... Eu sou mais forte!!! E aquele homem terreno... aparentemente tão frágil quanto o resto dos mortais... dentro de todo o seu sentimento de paz, bondade, amor e sabedoria... se virou e respondeu: o mais forte é aquele que detém a pureza dos céus e Eu sou o escolhido para vencer-te, Satanás, porque Eu sou Jesus Cristo!!! Aleluia!!! –”
... e até pelas pegadas dos pneus outras histórias se entrelaçam ao cruzar a história densa da cidade. Olhares de passagem recolhem marcas desse lugar e levam consigo os cartões postais permitidos somente ao imaginário. E dessa forma, uma parte daqui é levada para outros cantos do mundo, dentro de quem passa e vai embora mas não imune ao que aqui vê e sente:
“– Ow! De novo não! Tira essa música do player. Já tá enchendo o saco! (...) Tá bem, desculpe. Mas é que já estou tão enjoada dessa viagem que tô ficando uma pilha de nervos (...) É, eu sei, amor, a música é boa sim, eu também adoro ela, você sabe, mas já é a terceira vez que você coloca essa faixa nas últimas duas horas por essas estradas (...) Tá, mas deixa o álbum rolar então. Ouvir só essa música também não dá, né (...) Horas? Sete e meia da noite. Que horas mesmo saímos daquele lugar? (...) Ahn? Quatro da tarde? Nossa, já tô com dor no corpo de ficar sentada nesse carro. Que cidade é essa, heim? (...) Espera Feliz? Mas é Minas ou ainda é Espírito Santo? (...) Ah, é! Você falou mesmo, quando passamos por aquela cidadezinha (...) Isso, Dores do Rio Preto (...) Quero não, amor, mas você já deve estar com fome, né. Se quiser a gente pode parar em algum lugar pra comer (...) Ainda não? Você que sabe (...) Olha essa praça! (...) tem palmeira imperial (...) É, eu vi, tem ypê branco também ali na frente. Viu? (...) Ah, é, primavera floresce tudo (...) Onde? (...) Essa fachada (...) Sim. Parece ser antigo. É art dèco? (...) Essas ruas. Esses casarões. Essa cidade. No meio de tudo isso, quais serão suas histórias, heim? (...)”.
***
... então, finalmente recai a noite sobre tantas outras conversas de outros tantos anônimos, num vagar de vozes soltas até que chegue o inevitável calar da madrugada no meio de nós, aprisionando tudo e todos no sono das ruas, no silêncio da cidade iluminada...
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* Crédito da imagem: Douglas Pereira
2 comentários:
Entre Cidades
Fui passear por ai ...
queria perceber tudo tão claro,
vendo coisinhas novas em caras velhas
vi ali tambem o rapaz com a namorada
ali tambem tudo passará.
vi crianças medrando, temendo, medrosa
conformei por si só,
e assim fui passando,
até meu destino,qual é?
Paulo Erenio
E o narrador, sentadim no cantim, quase que com um cigarrim de paia na boca, só mirando o povo que passa.
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