Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Oba. Oi! (CRÔNICA)

A princípio, parecia tratar-se de um pedinte qualquer ou algum bêbado solitário perambulando pela rua a procura de nada surpreendente, mas pedinte também. O frio “europeu dos trópicos” ensaiava cair sobre as onze e pouca da noite de uma sexta-feira sem muitas novidades. Espera Feliz se resumia ao Calçadão que, entre eu e mais dois amigos, registrava a presença de outros poucos ao orvalho gelado. Alguns se instalavam rente à porta dos bares que resistiam em pequena fatura naquela noite, às margens da avenida central. A boemia de quem gostava do sereno noturno parecia ter se recolhido mais cedo. Assim como o resto de nós na mesma atmosfera faríamos daí a pouco. Portanto, só um início de fim de semana sem muitos acontecimentos ou motivos para se comemorar.

Mas havia algo entre todas as outras coisas que não havia no centro da cidade: o tal sujeito semelhante a um pedinte.

A conversa fluía sei lá a quantas quando uma voz de fundo, meio ofuscada pelo ruído de um Fusca que cruzava a via ao nosso lado, rompeu-se entre nossas vozes. Olhares na mesma direção: – Oba. Oi! – Essas foram as palavras alheias que furaram nosso diálogo. Miramos com ar de curiosidade o camarada que estava ao nosso redor, dizendo apenas oba, oi. Sobre sua pele morena, roupas maltrapilhas e desgastadas. Quase imundas. Nos olhava por trás de um rosto inchado e manchado de terra, estampando com falha nos dentes um sorriso tão rígido que parecia já fazer parte de sua expressão anos luz. Nos encarava no olho como se quisesse ser franco por algum motivo, e, enquanto sacudia sua mão direita atrofiada nos dois dedos do meio, como um complemento de sua comunicação verbal (também atrofiada), sua presença manifestava-se em confusos sentimentos de pena, compaixão ou piedade, ou nenhum destes. No entanto, era apenas mais um maluco perdido por aí. Nada mais. Isso, claro, aos olhos da cidade que já ia morrendo à beira da madrugada.

Não nos incomodava, mas pedia algo que não compreendemos o que seria. Talvez fosse simplesmente aquilo que seu vocabulário não podia nomear: atenção. Agora olhava para um quiosque de cimento com uma sombrinha de fibra no meio, à nossa esquerda, abrigando uma garrafa de cerveja vazia e um copo pela metade, abandonados por alguém que já havia abandonado aquela noite. Ele apontava para a bebida como se pedisse licença para tomá-la.

Voltou-se para onde estavam os objetos. Arregalou os olhos e o sorriso. Em balanços com o corpo como se estivesse num flerte imaginário com sua própria sombra, pronunciava pequenas palavras, talvez de cortesia – Oba. Oi! – junto aos artefatos inanimados sobre a mesinha com um tabuleiro de damas embutido no centro. Não demorou muito se apossou do copo e foi-se, caminhando sobre as pedrinhas portuguesas do Calçadão, degustando sua cevada como um elixir dos deuses das montanhas do leste. Sorriu. Sumiu.

Um vagante por um território paralelo. Sua estada por aqui poderia ser uma forma de viver pelo lado de fora. Ou ver a vida sob um ângulo desvairado e demente (não obstante privilegiado). Contudo, poderia sentir a solidão de todas as civilizações e ao mesmo tempo ser parte de todas as pessoas, pois dele a presença é perceptível e não havia impressão sobre ele que não saía impune. Guiava-se como carro que transita na contramão. Talvez seus pés descalços já tivessem perdido a conta de quanto pó já percorrera. Sempre assim, de um jeito assimétrico em relação a órbita das galáxias mentais do planeta. E seu sorriso eterno fosse a forma de interagir com o mundo que não era o dele, pois desconfiava que a simpatia é a ponte entre os indivíduos. Ao redor da vida caminhava em espaços onde ele não cabia, procurando algo que, provavelmente, nunca fosse encontrar. Mas ao menos devia possuir um objetivo – (?).
Rompeu-se mais uma vez por uma das esquinas. Veio e parou com um vira-latas de duas cores ao relento da grama molhada num dos canteiros do Calçadão. Antes de acarinhar seu focinho encardido, sorriu para o animal e: – Oba. Oi! –. O cão, em seguida, parecia ter sorrido também. Mas não quis acompanhá-lo.

Depois de instantes aquele figurante do mundo saiu em direções desordenadas, pisando duro, cambaleando de frio e sorrindo pelas ruas dos arredores entre buzinas e faróis. Falando oba. oi!, oba. oi!, oba. oi! a qualquer um que passasse por sua via. Deixei de ouvi-lo à medida que se distanciava e se perdia pela serração que baixava densa sobre os prédios e avenidas do centro da cidade.

E no final não sabia exatamente quem estava tão perdido no mundo. Se era eu com todas as palavras que usava enquanto conversava com os meus amigos, ou se era mesmo ele com o seu minúsculo vocabulário...
Mas tão repleto de significado.

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