Os olhos do sol sobre a cidade vão se fechando. Por trás do morro da Major Pereira as últimas nuvens do céu ocultam os últimos raios do dia. Entre as árvores dos galhos secos no cume da colina, alguns brilhos restantes. A brisa vem sendo carregada pelo vento e invade as ruas, os bares, as casas e apartamentos. Aos poucos o sol vai sumindo devagar pelas paredes dos últimos prédios. Então é noite e penumbra por todos os cantos.
Contudo, há um lugar na cidade, ou sobre ela, que ainda guarda os vestígios dessa tarde. Com a claridade do céu ainda refletida em suas pedras salientes, uma indiscreta montanha assiste de camarote o sol que vai adormecendo. O último ponto luminoso é visto permeando o alto da serra. E lá de cima o pôr-do-sol enfim se concretiza e Espera Feliz começa a se acender, poste a poste, farol a farol.
Mas mesmo antes de existirem os postes e a cidade, bem antes, quando todo o território urbano não passava de um vale verdejante cortado pelo rio São João, quando ainda não tinha nem esse nome, o Mirante da Serra já estava lá, assistindo a todos os crepúsculos virgens aos olhos humanos. Também nos dias de outras eras, sobre a camada espessa da serração de outros invernos, a montanha já possuía seu alto destampado, podendo observar ao longe todos os outros pequenos picos (seus irmãos menores) despontando-se pelo imenso lençol branco. E sua idade, só ela sabia. De sua existência, muito imaginávamos.
Certamente as tempestades a conhecem bem. Assim como hoje, há milênios as nuvens negras e passageiras de dezembro aglomeravam-se em seu entorno, encobrindo-lhe até ao meio, e o centro do pontão de rocha tornava-se o olho de raios e trovões. E sobre tudo recaía a chuva, começando por ela. Essa intimidade com o céu a faz ser uma anciã de grandes sabedorias e conhecimentos. Já deve ter visto cenários de quando o homem ainda não habitava sobre o planeta. Se já fora um dia apenas um morro, em sua infância distante antes de sua puberdade tectônica, talvez fosse apenas uma pequena inclinação rochosa, entre as ondulações sobre a grande planície que formou o vale de toda a encosta do Caparaó (e nesse tempo, com certeza já era firme, altiva, porque sabia que um dia seria imponente). Hoje não se sabe se é ela que pertence à cidade ou se é a cidade que pertence a ela. O certo é que fomos nós quem chegamos depois e fomos ficando, habitando suas margens, invadindo suas entranhas.
Porém, o que ninguém sabe é que por trás do seu profundo silêncio de montanha velha, ela nos vigia, sob o sol e sob a lua. Observando nossos passos todos os dias. E daqui debaixo somos ainda menores do que pensamos. Somos menores que nossas casas, menores que as antenas de TV. E dentro dessa noite que acabou de se formar, podemos nos sentir ao menos por algumas horas um pouco maiores do que somos, já que a escuridão sem luar ou estrelas engoliu por completo toda a montanha rochosa à espreita, e assim fingirmos ser indiferentes à sua ausência.
Mas amanhã, quando a luz retornar pela manhã, ela será a primeira a presenciar o sol. E em seguida, pela sua parte oculta, será generosa e nos trará de presente o dia, que romper-se-á no alto da sua serra e banhará toda a cidade, no meio de todas as pessoas. E ao abrirmos as janelas, veremos a montanha sempre lá, intacta, grandiosa. Nos vigiando. Olhando por nós.
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Trilha sonora para a leitura desta crônica: Canção “Para Lá” (de Arnaldo Antunes), na versão da Adriana Calcanhotto em seu novo disco “Maré” - (2008).
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