Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

A festa (CRÔNICA)

É um som que vem e chega e se entremeia e te leva sem te tirar do lugar... Mas eu prefiro andar, ou melhor, girar entre a multidão e o turbilhão de ruídos da música eletrônica ecoando através das caixas dos alto-falantes. Não é festa rave nem boate, é festa em Espera Feliz a céu aberto e a noite é de sexta nas entranhas da cidade. Tento caminhar entre as pessoas com seus movimentos frenéticos. Todos dançam. Mesmo não dançando. É um ritual das tribos urbanas. Mentes sobrecarregadas. Corpos acelerados.

Perambulo pelas barracas de drinque. Vou parando em algumas. Em outras, apenas cumprimento os amigos e os conhecidos que encontro pela frente. E sigo. Estou só, comigo mesmo e apenas, e penso não em mim. Penso em todos os que estão a minha volta, além de mim. Imagino que todos, assim como eu, desconfiam que aquilo tudo é uma ilusão. Que a festa em si é um grande instante de fantasia, com seus gestos, assuntos e danças artificiais. Apenas ali aquelas atitudes fazem sentido. E que o lugar onde estão, cheio de músicas, luzes e vida, na próxima segunda-feira será novamente o mesmo lugar escuro de sempre, a mesma garagem das máquinas da Prefeitura. Mas assim como todos, finjo que aquilo tudo acontecendo é real e me deixo participar. Danço e caminho...

O ambiente é como uma rua. Projetada para ser margeada por barracas onde se compra cerveja, outras bebidas e queijo empanado. São os bares daquela avenida, também artificiais. A moçada ocupa o meio. São mulheres, bonitas ou não, homens, jovens, adolescentes e coroas. Embora a maioria esteja na casa dos vinte. E são muitos os indivíduos. Todos conversam, riem, bebem. Observo bocas desocupadas em batom e brilho; enquanto outras demoram-se em beijos após flertes-minuto que nunca mais serão repetidos. Vejo olhares perdidos no zumzumzum a procura de alguém; e olhares procurando serem achados no meio de tantos outros. Abraços, apertos de mãos e poses. Vez ou outra fico momentaneamente cego por algum flash desorientado que me captura como figurante em uma fotografia da qual não farei parte. Mas a festa é boa e saio (ou vou entrando) pelas brechas humanas e fumaça sob o sereno, enxugando na calça a mão, respingada de cuba-libre.

Paro os olhos que insistem em rodopiar numa energia psicodélica do som eletrônico e estridente. Sinto a visão embaçada pelas cores vivas das roupas de frio: são punks, patricinhas, neohippies e playboys. Reparo que entre as barracas de drinque existem pequenas passagens, dando acesso a outros lugares do território abarrotado. São os becos mal iluminados daquela rua tão abstrata. Lanço-me por um daqueles becos, esbarrando os ombros em outros ombros que sustentam cabeças embriagadas e viajantes ao redor. Me localizo no estreito e apertado balcão de uma daquelas barraquinhas. Peço ao bartender mais um rum, com gelo e limão, e vejo o que há além daquelas passagens: há pessoas. Mas ali se curte uma festa diferente. Quase todos se conhecem. Trocam idéias e fumam. Suas garrafas e copos plásticos vazios vão sendo descartados pelos cantinhos. No entanto, eles são um público tão normal quanto o outro. Mas observam tudo, comentam sobre as coisas, bebem, sorriem, dão uma volta... mas estão todos ligados a tudo e sempre por ali mesmo. Fazendo uma festa dentro de outra festa. E no final, do lado de cá e do lado de lá tudo faz parte de uma só alegria.

Que vai durando à medida em que o cansaço ou a lucidez vai se esgotando. A madrugada vai cedendo lugar a uma luz natural que vem chegando sem quase ninguém perceber e quando chega de manso, só restam os heróis daquela resistência (a uma noite de festa), que se dividem entre o pessoal que ralou naquela noite, os forasteiros querendo mais festa, os embriagados famintos e os catadores de latinha.
E todos acreditam que aquilo, apesar de ser ilusão, será real o bastante enquanto durar. Porque pensar uma festa assim é bem melhor.

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá Farley, estava pesquisando a obra do escritor Caio Fernando Abreu e me deparei com este trecho que me fez lembrar do seu texto "A festa"
“Louco porque tudo o que o homem faz em seu mundo simbólico é procurar negar e superar sua sorte grotesca. Literalmente entrega-se a um esquecimento cego através de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da realidade de sua condição que são formas de loucura — loucura assumida, loucura compartilhada, loucura disfarçada e dignificada, mas de qualquer maneira loucura.”