Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 25 de março de 2010

O fotógrafo

O fotógrafo hoje acorda cedo. Antes que a noite se dissipe completamente, confere as horas disparando o primeiro flash do dia registrando a posição dos ponteiros, ao fotografar o relógio pregado na parede. Talvez tentando eternizar o tempo que sempre se esvai na transição diária.


Após o café, com a câmera sobreposta à mesa fotografa a fumaça expelida pelo cinzeiro, que desenha distorcidos fantasmas como os de seus pesadelos. Veste o casaco cáqui de vários bolsos e se põe para fora empunhando sua máquina de tirar retratos de segunda-mão (na verdade uma digital importada, de tecnologia chinesa).


Não se vê motivos aparentes para que o homem saia levando seu equipamento. Ele não é turista. Não trabalha pra jornais. Não é nem mesmo fotógrafo profissional. Mas quando decide fotografar, deixa de ser um homem, deixa de ser pessoa, deixa de ser sequer indivíduo. Passa a ser apenas “fotógrafo”. E vai.


Caminha por longas ruas arborizadas sob uma manhã amarela. Pela sua cabeça conspiram pequenos devaneios de que poderia estar percorrendo Paris ou Amsterdã, Buenos Aires ou Ouro Preto. Mas logo percebe que os paralelepípedos que retrata reluzindo o sol são os mesmos os quais pertencem às vias de sua cidade perdida de todos os mapas. E de si.


Até a hora do almoço seu cartão de memória passará da marca dos cem arquivos; fora os excluídos. Até o momento em que se acomoda no refeitório enfumaçado do Bar Central onde se sacia com comida a quilo, o fotógrafo já terá percorrido meia cidade, capturando imagens tão corriqueiras quanto insípidas de sentido: folhas secas entre guimbas de cigarro ao chão, placas de trânsito e faixas de pedestres, calçadas com rachaduras preenchidas por musgos, cães imundos, homens engravatados saindo ou entrando nos bancos, garotas com decotes nas portas da boutiques, automóveis e bicicletas em movimento, paredes desbotadas pela poeira e pelo tempo, flores de cores vivas dos jardins... E outros objetos cinzas com formas indefinidas.


O período da tarde também é desvelado pelo fotógrafo à medida que vai registrando cenas por onde se guia. Flana como um satélite sem órbita, desviando-se de postes e dobrando esquinas. Os quarteirões que deixa para trás são levados por ele em fragmentos digitais guardados em seu apetrecho eletrônico. Fotografa espelhos de barbearias respingados de loção e talco, o vôo das moscas sobre os latões de lixo, o guarda-sol das mães que carregam seus filhos no colo, os chapéus dos senhores conduzindo charretes pelas ruas, as pichações nos muros baldios e os tênis esfolados dos skatistas descendo em bandos pelo passeio. Quando lembra da primeira fotografia que fez neste dia, percebe que doze longas horas se passaram desde que acordou até o ponto onde caminhou. Dá o último click e leva para casa o entardecer rubro do sol tocando o asfalto, no horizonte do outro lado da cidade. E retorna.


À noite o fotógrafo descarrega a câmera no USB do seu computador. Seleciona as melhores fotografias e edita uma montagem, como se montasse um desconexo quebra-cabeça. Entre os vários temas no painel que acaba de produzir, arrasta com o mouse o seu auto-retrato e o cola exatamente no centro do mosaico. Assim tudo passa a fazer sentido. Sua intenção, sua caminhada, suas imagens capturadas são uma forma de se sentir parte do próprio mundo aonde vive. O que, nas cenas quotidianas, raramente sente.

*

De algum modo, muitos de nós somos um pouco parecidos com ele. Mas, diferente do fotógrafo, quando chega a noite nos sentimos completamente perdidos em meio às nossas desconexas fotografias, entre as quais não conseguimos inserir nem mesmo o próprio auto-retrato.

2 comentários:

Anônimo disse...

Pois é. O fotógrafo tem o dom de captar aquilo que os olhos comuns são incapazes de ver.

Interessante o texto :)
Um beijinho e obrigada pela visita !^^ Indie? Talvez...

Milene e o Movimento disse...

olá farley

bacana blog!

amelie,los hermanos e radiohead são bacanas também!

:) gostei
bem, email enviado!