Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Uma plêiade de lembranças

* * *

No território do pensamento humano não há espaço que guarde todas as lembranças dos momentos vividos em outras eras de nossa vida. Existe quem diga que com o chegar da idade a perda da memória aumenta. Não exatamente no sentido de que ela pode se agravar com o tempo, mas pela quantidade de lembranças que se adquire ao longo da vida e que se vão neste processo natural do desgaste dos anos. Também não é questão de se apegar ao passado, mas alguém sem imagens guardadas na cabeça é talvez alguém que tenha perdido pelo caminho algumas partes da sua própria vida, que tem a sua história mutilada.


Até que o saudosismo, às vezes, faz bem para o lado espiritual. Relembrar momentos cruciais, mesmo que à época não nos déssemos conta de que eram, faz nos sentirmos mais especiais. Rememorar vitórias, amores, histórias, períodos de euforia acaba tendo para nós o mesmo valor que das passagens mais simples que tivemos, como quando vimos o mar pela primeira vez, quando sentimos sabores e cheiros que nunca mais foram os mesmos ou quando olhamos tardes tranqüilas que não conseguimos mais enxergar. Resgatar pontos distantes na memória talvez seja uma forma de reviver coisas não mais permitidas.


Mas é, acima de tudo, uma maneira de provar para nós mesmos quem fomos e onde estamos hoje. Dando-nos assim a chance para nos auto-elogiarmos ou mesmo para mudarmos o rumo da vida que levamos. Conforme for o estado atual em que ela se encontra.


Um jeito de se medir, mesmo que vagamente, o acúmulo de lembranças que guardamos é observar uma lacuna no tempo, precisando um determinado período do nosso passado. É o que por um acaso me aconteceu na semana passada. Consegui localizar pela web um velho amigo meu, um camarada que conheci na minha infância e que, ainda criança, se mudou para outra cidade e desde então nunca mais o vi.


Lá se foram uns dezessete anos. Milhares de dias da minha vida entre a infância e hoje que foram percorridos mais uma vez numa conexão de muitas, de incontáveis lembranças quando restabeleci esse contato. Penso não apenas nos dias que vivi e como os vivi durante esse período, mas tento imaginar também como estes mesmos dias foram percorridos pelo amigo de infância, que se encontra agora em terras mais longínquas. Desenho mentalmente o rumo que cada um tomou e qual rumo teria tomado se não tivesse existido aquela mesma infância que tivemos, com a mesma turma de moleques dividindo brincadeiras, jogando bolinhas de gude (sim, isso é do meu tempo), com os mesmos nomes que chamávamos aos berros no meio da rua, com os mesmos pés no chão mas com a cabeça no espaço (não apenas aqueles que queriam ser astronauta, mas todos nós sonhadores de ingênuas e despretensiosas imaginações). Período também que, após reencontrar aquele menino que cresceu, desenha-me uma constelação de sentimentos antigos perdidos há muito em algum lugar dentro da minha história, formando uma plêiade de lembranças boas que não param de cintilar para mim em sensíveis recordações daquele passado que tive.


O amigo me enviou uma fotografia da época. Por mais que me esforce, não consigo me lembrar do dia em que ela foi feita. Quando conseguir, então talvez eu volte a ser criança por alguns instantes, só para mais uma vez sentir como é ser totalmente simples, sereno e puro. Desnudo de qualquer peso que o rolar da vida nos impõe.

*

Assim como éramos todos nós naqueles tempos.

* * *

(Os personagens da foto são os amigos da infância no Bairro João do Roque. Dos que estão sentados, o quinto da direita para a esquerda sou eu, há dezessete anos atrás.)

3 comentários:

N. Rodrigues disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
N. Rodrigues disse...

Talvez, a beleza de um dia termos sido criança e de agora nos percebermos adultos, com as costas curvas de tanta responsabilidade, resida exatamente no fato de que não temos escolha. Somos obrigados a seguir em frente, a ir de encontro ao envelhecer, para que um dia possamos parar no meio caminho, olhar pra trás e dizer: tempos bons aqueles... como você bem fez hoje.

p.s: a foto é simplesmente preciosa. Quisera eu receber uma dessas de um amigo de infancia...

:)

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Luiz Fernando "Mirabel" disse...

Há algum tempo escrevi que decisivo é o tombo da criança e a cicatriz no adulto. A marca não sai. A dor passa. O curativo já foi. A lembrança fica.

Assim penso, assim fico no aguardo do dia em que o presente será tão bom quanto uma fotografia feliz!

Grande Farley, abraço!