Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A hora permitida ao Bloco do Pé Inchado

Quando acordarmos, veremos com olhos de cinza a fuligem de alegria entre guardanapos sujos sobre o asfalto. Daí nos lembraremos do sonho que de forma coletiva começamos a sonhar há quase uma semana atrás. Depois disso, em flashbacks as cenas irão se recompor...

... Há um tumulto de pessoas que vem se aglomerando desde o início dessa primeira noite de carnaval (e o nosso primeiro desta década) em algum ponto da Jaime Toledo, tendo como reduto o Bar do Banana. São foliões de todas as espécies, idades e genótipos. Os maiores de dezoito anos exalam bafo de álcool pelos poros recobertos de confetes, enquanto os menores fingem participar da mesma euforia etílica entornando copos de refrigerante (?) e suco de caixinha pela garganta. Entre todos, existe uma unidade que os caracteriza como membros de um só grupo: estão vestidos com roupas de dormir (de bolinhas, listradas, rosa-choque, curtas demais ou largas demais). Descem furiosamente alegres pela Reta até ganharem o centro da cidade. É o Bloco do Pijama abrindo alas.

De cá, num boteco às sombras antigas do prédio do Educandário Sacramentino, assistimos o bloco passar enquanto o nosso começa a ganhar uma meia-dúzia de adeptos.

Em seguida, as cenas que vem à mente parecem retratar uma folia cronologicamente fora de contexto. O carnaval este ano não possui dia ou noite, é apenas uma seqüência de fatos contínuos que se sucedem à medida que os copos vão se esvaziando e as garrafas secando (para encherem tais copos).

Entre as horas em que acontece este carnaval descontextualizado de qualquer narrativa possível, uma outra multidão se aglomera frente a um outro bar, com seus integrantes uniformemente revestidos por abadás de cor ocre, tendo na estampa uma bocarra com os dizeres: Bloco Boca do Povo. Saem pirotecnicamente rua a fora, acenando e balançando a cabeça no ritmo das machinhas tocadas pela banda que os acompanha, ritualisticamente.

Do lado b, observamos serpentinas cruzarem os ares sobre ombros e perucas dos fantasiados, enquanto nós, entediados, olhamos de fora a vertigem dessa festa que sentimos não nos pertencer.

Num outro momento, foliões mais religiosos diriam ter se transformado a cidade em um grande cenário de Sodoma e Gomorra. Das várias ruas que desembocam no Centro são vistas pessoas androginadas a maquiagens caricaturais, dançando e rebolando com a batucada ritmada: homens travestidos de mulher e vice-versa, incorporando ao que todos chamam carinhosamente de Bloco das Piranhas.

Ao contrário, o nosso bloco, que agora já passa de algumas dúzias de semi-embriagados e se estagna pelos balcões manchados da venda do Ataíde, não se camufla com nenhuma fantasia. Exceto a fantasia de que no lugar do axé e do funk exacerbados nos carros de som, estivéssemos ouvindo uma música mais alternativa, algo menos oba-oba (suspeito que o nosso bloco seja formado só por pessoas chatas. Ou não).

Não obstante, rufam os tambores e tamborins da Unidos da Major Pereira e dos Acadêmicos do João Clara. De onde estamos temos a impressão de que as duas escolas, ao alcançarem a avenida, duelarão seus sambas numa confluência de enredos jamais ouvidos por aqui, e num surto de determinação e glória ambas, ao se chocarem imaginariamente frente ao Calçadão, explodirão numa única apoteose de cores e plumas, exibindo suas mulatas sambando freneticamente até soltarem estrelas da ponta de seus saltos que cintilarão eternamente sobre os carros alegóricos... (Todavia, tudo, ao nosso ver, resplandece numa psicodélica alegoria que fazemos de nós mesmos dentro de uma festa a qual não fomos devidamente convidados).

A partir daí, restarão pelos espaços vagos da nossa lembrança os últimos clóvis que já retiram seus panos abobadados e enxugam o suor da testa com as costas das mãos cheirando à lança-perfume; colombinas que dão seu último suspiro de paixão antes de voltarem sozinhas para as suas casas tristes; cães que já reviram sacos plásticos pelas esquinas; e nós...

... Nós estaremos acordando com a cara grudada no asfalto, vendo com olhos de uma quarta-feira de cinzas a fuligem da alegria que ainda há pouco desfilava entre os foliões. Na dúvida de que tudo tenha sido sonho ou não, concluiremos que o nosso bloco, rebelde por natureza, só se permitiu sair após o último confete ter se repousado ao chão, quando os últimos bares apagaram suas luzes. Com isso lembraremos apenas que o nosso grupo se auto-intitulava de o Bloco do Pé Inchado.

Dos mesmos pés que agora terão que sustentar a sã consciência de muitos após as ilusões deste carnaval.

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Bloco do pé Inchado é o termo sugerido pelo amigo Eder Herdy, para nomear um bloco imaginado durante o carnaval de 2007. “Pé Inchado” porque a ideia era reunir um pessoal e percorrer pelos botequins e muquifos das adjacências da cidade, virando uma pinga em cada um, e terminar a noite no centro de Espera Feliz. O bloco não se concretizou, mas de certa forma ele existe (e continuará existindo), com seus espalhados integrantes anônimos que sempre tomam umas e outras e que só vão dar conta de si na manhã de quarta-feira. Ou na de quinta.

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