Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Rastros de cães noturnos (CRÔNICA)

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Alonga-se a madrugada na 00:28 horas de um qualquer, e de dentro dela vem decantando a serração pelo bico das montanhas do conjunto da serra, aproximando-se dos arredores desta mínima metrópole dos confins de Minas. Vem em sinais opacos na luz amarela dos postes manifestando sua presença. A noite assim não é negra nem alva: nesta hora é prata sob um céu turvo onde, oculta, a lua próspera clareia ao fundo da névoa.

A qualquer canto os gatos vagabundos já se recolheram (também os gatunos sem teto não rondam mais), mas só nós não nos damos conta de que até as janelas também já se adormeceram. A rua se faz apenas, caminhando sobre o chão, àquela altura, despovoado e nossos pés a acompanham passo a passo, mesmo que não pareçamos estar pisando sobre a areia entre pontas de cigarro. Nisso, as distâncias vão se encontrando a cada esquina desabitada. Apenas a presença de nós, nós com nossos lúcidos devaneios. À frente.

Ao farol alto no limiar de um quarteirão nossos olhares desatentos se desequilibram. Porém, de relance, logo nos ultrapassa em direção oposta o automóvel anônimo que de seu resto ficam esparsos sonoros de seu ronco retornando tudo novamente ao sossego. Até sumir. Continuamos.

Não há bares ou lojas ou qualquer outro estabelecimento aberto que sirva euforia enlatada a vácuo ou vedada à rolha. Há somente as calçadas e seu pó, com o vento noturno varrendo-o para os cantos das paredes e portas trancadas em silêncio. Ou para sob a sola dos nossos sapatos gastos que registram a cena em que estivemos ali, deixando como rubrica o nosso próprio rastro.

Mas, ao amanhecer, já não nos encontrarão mais por lá ou em qualquer outra calçada. Nem mesmo as marcas dos nossos passos serão visíveis. Ao amanhecer a cidade será encharcada de sol, tão familiar para quem é do dia. No mesmo tempo tão estranha para quem a habita à noite e conhece o seu lado oculto como somente os cães calados e sem rumo sabem. Às horas da noite apenas a vagar.

O lado oculto desta cidade é denso, é solitário e é inédito. Mas ele sempre está entre nós. Dentro do hiato de cada noite.
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Mesmo que por baixo do sono das casas e apartamentos nada se perceba.
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Crédito da imagem: Douglas Do Carmo Pereira

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