Blog de Farley Rocha

sexta-feira, 6 de maio de 2011

A Festa do Paraíso

Da onde estou, apoiado pelo cotovelo no balcão da barraca de drink em forma de saloon, posso ver os faróis que de quando em quando brilham a estrada no alto do morro. Automóveis empoeirados chegam de todos as partes e disputam a várzea feita de estacionamento. Ônibus abarrotados desovam os caça-festas vindos de Espera Feliz, Carangola, Caiana e adjacências. Por isso, neste contexto, não deixo de ser um deles, pois aqui também estou na Festa do Paraíso (ou, para os já ambientados, “do Paradise”).

É noite sem lua e quem de fora que acaba de chegar não pode ver o vale aonde a festa explode com o silêncio sideral do campo (portanto, não fará ideia do nome “Paraíso”). O lugar é um povoado idílico, uma vila de fronteira entre estados nascida como pintura rupestre no berço montanhoso da serra. No meio de uma planície milenar que sugere o mesmo misticismo comum ao imaginário das Américas, estamos a quilômetros de tudo e do resto do mundo que nem imagina a existência deste lugar. Mas esta festa existe, e dentro dela os corações acelerados à frequência dos alto-falantes. Tanto que uma mixórdia de sons rabisca interseções agudas nos meus ouvidos e desisto de distinguir o que é guitarra, eletrosamba, funk ou forró.

Olho a volta o público multi-faixa-etário que se agita, uma quermesse de cores ambulantes desde os gorros, cachecóis e outros agasalhos debaixo de uma névoa fina que vem do céu. Faz frio de alto inverno em meados de outono e minhas mãos sempre gelam ao tocarem o copo tilintando gelo.

Alías, não sou o único por aqui a bebericar destilado, haja vista os círculos de amigos espalhados por todo lado tendo no centro uma garrafa aberta, como se realizassem um culto etílico num ritual de risadas, alegria e diversão (fora o exagero. Afinal, é uma festa). Nisso, observo o olhar de cada um feito webcam indiscreta, capturando momentos tão pueris quanto esta crônica. Mas não faço por invasão. Só por curiosidade, tento como num jogo de advinhação enxergar o que seus olhos veem enquanto bebem e riem. Percebo que não sorrio, daí peço mais uma ao bartender (agora sem gelo).

Desgrudo o cotovelo do balcão e vou dar uma volta, antes que o próprio balcão e tudo o mais comecem a girar em torno de mim.

Longe dali, longe da multidão que circula e coreografa ecleticamente os batidões, existe o lado B do evento, onde aventureiros, neohippies e festeiros de gosto mais underground preferem ficar. Ao lado do estacionamento, uma infinidade de barracas de camping faz lembrar, pelo formato iglu, uma confraria de tartarugas com casco de nylon e poliester. Estão dispostas às margens do riacho que cruza a planície travestida de madrugada. Ali há uma espécie de festa paralela, que somente os campistas e esta cópia barata de cronista beatnik que vos escreve podemos presenciar. Tem uma badalação diferente: muitos sentam ao chão, sob os arbustos, frente às barracas, e conversam relaxadamente sobre Foucault e Raul Seixas, sobre os anos oitenta e o fututo da música contemporânea. E riem. Ou choram. Ou cantam. Rola o esquema tipo fogueira e violão, com um Bob Dylan meio embriagado sendo arremedado pelo coroa de pernas cruzadas sobre a grama. Cena contrastante ao sertanejo universitário que vem do palanque, distante de nós.

Imagino a controvérsia que neste momento paira sobre este vale. Em dias comuns por aqui, as horas passam lentas para o homem de chapéu de palha, guiando a carroça que sempre sobe o mesmo morro durante a lida. Mas agora dá lugar ao sincretismo de vários nichos fragmentados dentro desta festa rural-rock do interior: playboys, emos, cowboys e uma vaga caricatura de um Woodstock no meio das montanhas. Olho ao redor não para decifrar o elo de relação entre esses grupos, mas para saber a qual deles devo pertencer (e, principalmente, ter a certeza de que tudo isso não passa de um sonho).

Mas não importa. Ao romper do dia, quando acordarmos dessa ilusão e abrirmos os olhos sob o sol caleidoscópico da manhã, veremos a paisagem que nos cerca e entenderemos o motivo pelo qual este lugar passou a ser chamado de PARAÍSO.

E por um segundo apenas, a ressaca que provavelmente virá depois da festa parecerá nunca ter existido.
* * *

7 comentários:

José Fernandes disse...

Meu amigo Farley. Mais uma vez você vem me trazer o passado de volta. Sinto saudade daquele tempo... eu queria poder voltar a sentir aquelas mesmas sensações... mas hoje sou outra pessoa, fiquei velho. Tenho apenas as lembranças e a certeza de que foi bom e que nunca mais poderá ser novamente. Mas, de qualquer modo, dentro de mim aquelas emoções permanecem vivas, e posso lhe garantir que poucas pessoas entendem, como eu, a magia daquilo que você chamou aqui de "festa paralela". Linda crônica e o final foi de uma beleza particularmente surprendente( perdoe-me a rima). Abração, grande poeta!

Humberto Dib disse...

E aí, rapaz!
Passo pouco tempo pelo seu canto, mas sempre que volto fico surpreso pelas suas crônicas, são excelentes.
Um abraço desde Argentina.
Humberto.

Unknown disse...

Caro amigo, não sabia até então das suas crônicas envolvendo várias tribos. Só me vem a mente a festa paralela...uma violão às 6:00hs da manhã, uma gaita arranhada, a lá Bob Dylan e um estado de mente, diriamos assim...confortavelmente entorpecido...

Abrçs!

carikaturARTE disse...



Caro Farley...

PAR.ISO 2011 (licensa poética no ISO sem acento),
"certifico a qualidade do evento"!

Ar inFESTAdo de alegria, energia BOA!

:o)

Junior Santos disse...

Saudações, Farley! Analisando mais este produto de sua alma idílica, chego à conclusão de que você está para o leste mineiro assim como Sabino e Drummond estão para o estado em sua integralidade. Se os mencionados escritores tratavam de uma Minas "gerais", a sua obra e, em especial, a crônica em questão, descreve uma Minas "particular" - que começa no cume do Pico da Bandeira e percorre as nossas alterosas regionais -, pequena em extensão territorial, mas múltipla em valores e heranças culturais.

Farley Rocha disse...

Amigos, um dia ainda alcanço pelas minhas crônicas a mesma gentileza sincera e bonita de seus comentários...
Um forte abraço!

Anônimo disse...

farley estou aqui para parabenizá-lo pelo blog e para deixar o meu abraço amigo.
saudações of the left!
fillipe (mau mau)