Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Diários de um montanhês

27-06-2010

(06:36h)

Estou no cume do Pico da Bandeira. De dentro de uma jaqueta de nylon pra baixas temperaturas e mais alguns outros agasalhos resistentes, tento escrever na minha caderneta de bolso enquanto ventos leste vêm em minha direção como se empurrados pela manhã que se desperta, e tentam arrancar meu gorro de lã e mandá-lo às alturas. O que daqui de cima significa muito. Estou há 2.892 metros de altitude em relação ao chão habitável, lá embaixo. E a minha volta, sobre o rochedo obtuso e gelado onde estou, há pedregulhos e cascalhos, lajedos recobertos por vegetação escassa de plantas com caule e folhagens grossas e ásperas. Apenas as plantas mais arrojadas sobreviventes. Porque aqui em cima não há possibilidade para qualquer outro tipo de vida que não a delas. Nem mesmo formiga, nem mesmo pássaro.


Lembro-me da noite passada, no acampamento da Casa Queimada no sopé do pico, eu e os outros montanheses presenciamos o espetáculo da lua nascendo. No vale onde estávamos, houve um silêncio muito maior do que todo o silêncio vasto da Serra do Caparaó quando um vulto luminoso e intenso começou a tremelicar por trás da encosta rochosa sobre nossas cabeças. Instantes depois ela apareceu, a lua, e despontou sobre o vale e arredou as sombras gélidas que rondavam o acampamento. E nos contagiou com sua grandeza simples só pelo simples fato de existir, e clarear.


E foi sob a sua claridade prateada e protetora que nos guiamos pelas trilhas que nos trouxeram até aqui nesta madrugada, debaixo de um céu repleto de astros ancestrais e tempestades arrebatadoras de estrelas cadentes que cruzavam os ares frios e rarefeitos destas altitudes, oxigenando ofegante nossos pulmões. Caminhamos por umas três horas e meia, atravessando rochas de formação vulcânica e suas silhuetas cretáceas, e desviando de penhascos e precipícios. Tomamos café pelo caminho e comemos bolachas sentados em platôs rudimentares, avistando ao longe o piscar das luzes de cidadezinhas perdidas na escuridão da noite fria, brincando de adivinhar qual era o nome delas.


Estou com bolhas nos pés e minhas botas estão resfriadas. Minhas pernas doem, principalmente os joelhos, e meus dedões estão duros e dormentes. Mas nesse momento, enquanto escrevo e olho o que meus olhos veem por trás dos meus óculos escuros, minhas bolhas, meus joelhos, meu cansaço, tudo é resumido demais para que eu preste atenção. A minha volta, lá por baixo destas nuvens, e daquelas outras, e aquelas mais adiante, existe o resto do mundo e eu, sob os raios desse sol que se impõe ao dia, vejo tudo daqui de cima e assim sinto ter uma vaga ideia daquilo que pode ser chamado de liberdade.

* * *


15-08-2010

(08:42h)

Estou abrigado no rancho de pedras construído há mais de sessenta anos pelos antigos do Caparaó, num lugar da serra chamado de Terreirão. Apesar do frio que faz lá fora, aqui dentro a temperatura está agradável. Meus pés e mãos estão quentes, embora tenha bolhas no pé. Escrevo sentado no chão de assoalho tosco do rancho, recostado em minha mochila úmida e gelada, ao lado do fogareiro onde ferve uma chaleira d’água para o café que passarei daqui a pouco.


O planalto aberto a mais de dois mil metros de altitude que é o Terreirão está submerso por uma névoa grossa envolta em uma neblina invisível mas que impermeia aos poucos os nossos agasalhos. Mais cedo, pela madrugada, esta mesma névoa nos apanhou mais ou menos nesse trecho da trilha, enquanto subíamos em direção ao Pico da Bandeira. Debaixo de um céu escuro sem lua e nenhuma estrela, fomos tragados pelo nevoeiro que perpassava a serra durante a noite e nos guiamos graças aos veios das trilhas feitos pelos passos de muitos outros montanheses que já passaram por ali. Nossas lanternas, obsoletas no meio de toda aquela atmosfera branca e intransponível de luz, somente formavam sabres incandescentes na direção em que as apontávamos, mas não serviam para clarear nem um metro a nossa frente. Apenas subimos encosta acima, porque o caminho era esse.


Pouco antes deste amanhecer, chegamos ao topo da montanha mor, ainda com a esperança de que o tempo limpasse e pudéssemos ver o sol e a manhã e os outros picos ao redor e o mundo todo lá embaixo. Mas o tempo que esperávamos não aconteceu. E retornamos montanha abaixo, firmando as botas sobre as rochas úmidas e limbos pré-históricos, cortando no peito a ventania que vinha a oeste e subia a cordilheira a quilômetros por hora, trazendo consigo tufos e mais tufos da mesma névoa que havia lá em cima. E se não deu para vermos a paisagem de um horizonte distante e circular que só quem já esteve lá no topo pode saber, essa escalada já valeu a pena por eu ter conhecido a parte oculta do temperamento de uma montanha. Aprendi que ela dá luz quando ela quer, e que pode se ocultar do mundo caso não esteja praquele dia. E este dia, penso, deve ter sido assim.


Agora, enquanto bebo o meu café recém-tirado do fogo, imagino a jornada que ainda me falta até chegar ao final desta caminhada, de volta pra casa. E, além disso, penso também que me enganei sobre algo nesta serra: imaginava que o cume do Pico da Bandeira era hostil demais para que houvesse vida que não fosse a vegetal; mas quando esta manhã surgiu, lá no topo da montanha, mesmo entre a névoa e a neblina fina que pulverizava o ar um pássaro apareceu, solitário como um monge das alturas que tem o infinito como seu limite. Era um tico-tico de penas acastanhadas. E ele dava minúsculos passos saltitantes entre as rochas, catando alguma coisa pelo chão de pedra dura - talvez as migalhas das bolachas que comia. E depois voou, sumindo como um ponto escuro no meio da névoa clara.

h

* * *
(Imagens: Pico da Bandeira, Serra do Caparaó - Minas Gerais)

3 comentários:

Enrique Carlos Natalino disse...

Farley,

Ler o relato dessas aventuras sempre nos traz boas razões para voltar a Espera Feliz. Aliás, um dos guardas lá do Caparaó me disse que possivelmente teremos uma trilha contornando o Pico do Cristal, ligando o Terreirão de Pedra à Casa Queimada. Já pensou?

Abraço,
Enrique

byTONHO disse...



"Do alto da montanha
um mundo vos contempla!".

Tonho

Veja comentários abaixo.

byTONHO disse...



IETLOV ←

"Passe(ar nas montanhas
é caminhar nas nu)vens
é perto do ali-além!"



Lá no DISCRIÇÃO farley e disse!


No olho da RUAdor...
RUAceiro passeia na BOA!

DEZcri(a)ção!

:)

Abraço-tchê!

Visite:
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FArLEIy!