Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O forasteiro de primavera (CRÔNICA)

Foi num domingo desses, quando a tarde ensolarada tomava conta de todos os lugares, levando seu breve calor recém-chegado às costas dos bairros, das ruas e das colinas, num dia em que tudo parecia girar em tons de uma determinada alegria, foi quando ele novamente retornou à cidade. Chegou meio sem ser notado. Porque veio descendo pela Reta, onde perambulavam poucos transeuntes, antes de chegar ao centro. Talvez tenha vindo da montanha, pegando carona pelos pastos do Morro da Canoa, e rolou até o calçamento do início da rua, lá em cima; ou pode também ter vindo da cidade vizinha, passando por um caminho alternativo pelo qual não levantaria muitos alardes. Mas veio, e por aqui permeou cada metro de pista como se fosse ainda o seu território, com as mesmas sinalizações de trânsito, com as mesmas árvores nativas pelas calçadas, com o mesmo sotaque espalhado pelas bocas. Tudo igual a antes, como assim havia deixado desde sua partida, há tão pouco tempo.

Para não ser sacado logo de cara, achou melhor tanger pela Rua João Carlos e por ali guiar-se até a José Grillo. De alguns automóveis que passavam por lá, seus condutores perceberam a sua chegada e simplesmente o ignoraram, fechando os vidros. Mais adiante, seguindo seu silencioso vagar à beira das janelas semi-serradas das casas, chegou às margens da Avenida Roque Ferreira, disposto a percorrê-la impetuosamente, não dando grandes importâncias ao fato de haver pouca ou muita gente. Queria apenas chegar, rever tudo, mas sem a pretensão de fazer contatos.

Trocou de calçada e seguiu lado a lado à longa Praça da Dona Dadá. Ao contrário do que imaginava, poucas pessoas estavam por ali: alguns pares de namorados, casais com seus filhos e enfim. Foi almejando todo o percurso, como antes, silenciosamente, tocando uma flor ou outra, uma folha, o pó do cimento. E ao final da passarela retornou pela mão oposta. Porém, ninguém até o momento sentira a sua passagem. Exceto um cachorro de rua recostado no gramado do jardim. Dormia, na verdade. Teve o sono interrompido pela presença do atual forasteiro, embora tivesse passado sem dar confiança ao animal. O cão não abriu os olhos, mas recolheu as patas em gesto de proteção.

Mas a avenida haveria de se chegar ao fim e nessa hora, mesmo sob toda a sua discrição e imparcialidade junto a tudo e a todos, o público do Calçadão banhado pelos raios do sol no centro da cidade não deixaria de notar sua chegada. Adentrando setembro, a rua parecia ser o conceito mais próximo entre tranqüilidade e movimento. Várias idades coloriam os quiosques com as cores de suas camisetas. Pais jovens e mães jovens tomavam sorvete com seus filhos no colo. A moçada toda por aqui e por ali. Por todo canto. Pelas portas dos bares abarrotados e pelas mesas das calçadas improvisando uma alameda dos estabelecimentos. A geração lan house manipulando seus notbooks sobre as pernas, sob o reflexo solar nas telas. Muitas risadas e música. Muita música dos carros de passeio estacionados à pista. Um fim de semana em Espera Feliz, um sol brilhante no céu de poucas nuvens e um novo jeito de olhar dos olhos das pessoas que lotavam o Calçadão com a naturalidade de quem fazia dali a varanda da própria casa.

Desde que foi embora, ninguém sentia a sua falta ou saudade. Ao contrário, seu passeio inusitado poderia até constranger a alguns. Sob o calor já anunciado às vésperas e um copinho de cerveja gelada, agora o sentimento de todos era assim, tranqüilo e à vontade, sem a presença daquele que neste instante retornava de leve entre a gente.

E num cenário assim ele facilmente seria descoberto, como ocorreu ao contornar o Pirulito com o emblema do Lyons Clube. Certo de sua austeridade e encorajado por sua arrogância, partiu rua a dentro, firme, fugaz. Quem estava no interior dos bares, entretido com o futebol na TV a cabo, não notou, mas os muitos que se instalavam pela rua e Calçadão puderam sentir seu vagar atravessando o asfalto quente. E para a sua surpresa, não teve sua presença percebida coletivamente, não causando assim nenhuma perplexidade chocante em todos ao mesmo tempo. Alguns rapazes tatuados que seguravam a coleira de seus cães de raça, moças com roupas de costas à vista e mais alguns à sombra das árvores é que foram os primeiros a perceberem. Aos outros, foi-se revelando aos poucos. Mas quis ser breve e não se demorou. Afinal, não tinha intenções de incomodar, apenas queria deixar o recado de que esteve ali e que aquele lugar ainda era seu, assim como todo o resto da cidade também lhe cabia uma parte. Ao se retirar, optou por não olhar para trás, mas a música continuava entre olhares duvidosos sobre aquele reaparecimento súbito e gargalhadas meio alteradas de alguns.

Diferente do jeito que chegou, preferiu não voltar pelo mesmo lugar que veio. Conduziu-se pela Fioravante Padula, flanando solto frente à escadaria da igreja Matriz e o acostamento da via principal. De lá não se teve mais notícias dele, nem rumores advindos da Rua Nova ou da Vila Raquel chegaram.
Mas o fato é que todos os indivíduos que o sentiram passar por aquela tarde dourada, souberam que aquele vento frio percorrendo a cidade como uma brisa gelada entre os raios ultravioletas do dia era um genuíno mensageiro anunciando discretamente que, embora já fosse primavera, o inverno ainda continuaria rondando por ali, mesmo que meio anônimo depois de sua partida oficial. Mas iria longe, até aos extremos de alto novembro, quando finalmente chegasse o verão sobre a cidade encobrindo com o calor todas as nossas ruas e por entre elas os nossos corações.

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