Não há medo nos olhos daquele gato que atravessa a noite. Não há medo no olhar da coruja que observa o gato. Da varanda, onde está o gato, mal sabe ele que quando estiver próximo da ave, em um só golpe de asas a coruja lhe escapará para o alto. Dilá, ela o olhará com escárnio, e o felino, frustrado, apenas recolherá sua fome entre o frio da noite e as árvores do quintal.
Longe do quintal e longe de qualquer gato, há o mesmo frio que persiste. Dentro da noite. Sob os postes e rente ao chão. Canalizado pelas ruas entre casas e vielas. O frio e suas partículas permeiam cada centímetro desta cidade quase nevada entre os píncaros da serra.
Os trajes noturnos de quem caminha sobre suas pracinhas são espessos. Moças imergem o pescoço em longas voltas no cachecol, mãos e gestos limitam-se aos bolsos ou às luvas. Casais apertam-se mais forte e os copos da cerveja nos bares do centro são trocados por um de conhaque (os antigos do Caparaó diziam que faz esquentar). Tudo a volta em que se encoste, portas, mesas, cadeiras, asfalto, brisa, parecem ter superfície de iceberg. Álgido.
Ao amanhecer, mesmo com o brilho do sol e a claridade do dia, o clima não será tão diferente. Pessoas irão para o trabalho esfregando as mãos uma na outra; e após o almoço, uma densa camada de serração pousará sobre Espera Feliz que, vindo do alto, tocará primeiro o teto das casas, depois a copa dos jucás gigantes da alameda da matriz e por final as calçadas da Fioravante Padula. Carros acenderão seus faróis. Mas não demorará muito, a atmosfera retomará sua aparência normal, restando somente daquela massa orvalhada pequenos tufos de nuvem pelo bico das montanhas ao redor, aonde provavelmente estará mais frio ainda.
Então, ao cair da noite seguinte o ar permanecerá gelado por todos os lados da cidade. E se intensificará a cada minuto. Será tão surreal que pedestres pelo calçadão não terão tempo de correr para se abrigarem. Cairão um a um, congelados como estátuas de vidro se estilhaçando no chão. A baixa temperatura atravessará paredes de concreto e também atingirá o interior das casas. Seus moradores, hipotérmicos, permanecerão intactos ao congelar-se, uns no sofá em frente à televisão, outros sentados ao computador. Outros muitos, na cama dormindo. E o rio São João se solidificará e o resto da cidade, em silêncio polar, parecerá um deserto inverso recoberto pela grossa crosta de geada.
E em outros quintais, sob outras árvores incrustadas de neve, restarão os únicos sobreviventes desta era glacial nas montanhas do leste: aquela mesma coruja observando o olhar, agora, de outros gatos. Todavia, nem um sairá da varando para saltar com o bote sobre a ave. Não pelo medo do possível fracasso. Mas pelo frio dentro da noite.
3 comentários:
magnífico relato!
me gusta mucho tu estilo narrativo.
besos*
Que funesto, mas bem legal.
Outro dia estava revirando um monte de papéis, e lá encontrei um que falava sobre seu blog. Nunca tinha acessado, me deu vontade de ver se tinha algo interessante. Não é sempre que se encontra alguém que fale sobre EF, e ainda mais sobre seus dias de frio.
E a propósito, aquele B injusto que eu tirei na oitava serie tá preso na garganta ainda.
Brinacedeira
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