Blog de Farley Rocha

quarta-feira, 19 de maio de 2010

O inflamável público

J. precisava mesmo era se aposentar. Mas antes que tivesse a oportunidade, o mesmo se foi, deixando sua senhora e um filho já casado. Morreu na semana passada e foi velado a caixão fechado (disseram que o corpo por algum motivo transfigurou-se).

Funcionário público competente, J. dedicou metade dos seus cinqüenta e poucos anos de vida (e dos cabelos) aos serviços da repartição. Em meados de oitenta, J. começou a trabalhar na prefeitura municipal fazendo despachos tributários, e o cargo durou ao longo dos dez primeiros anos de contratação, vindo a efetivar-se posteriormente. Por questões políticas, foi remanejado para a tesouraria e, de caxias que era, dava seus pitacos também na contabilidade. Logo foi nomeado a chefe de gabinete e assessorou dois prefeitos por duas gestões de partidos rivais. Seu mérito era reconhecido pelo seu talento e empenho. J. era assim.

Mas o longo da vida pública, como já é de praxe, fez J. se sentir desgastado com sua rotina. Àquela altura já não era mais um funcionário de repartição fixa, pois pelo tempo de casa acabou se tornando um arquivo ambulante, guardando em sua cabeça quase trinta anos de informações sobre os procedimentos burocráticos do município. Era solicitado em todos os setores e, geralmente, era sempre ele quem tinha a solução para resolver qualquer um dos problemas que surgissem. Isso foi cansando J. a ponto de ele ter se acometido a duas estafas e uma ponte de safena, depois que completou quarenta e cinco anos.


Sua mulher vivia falando que era para ele tirar uma licença ou dar entrada nos papéis da aposentadoria, mas J. não ouvia e todos os dias, na hora em ponto, estava na prefeitura, com todas as suas amolações.


Em seu ofício, cuspia relâmpagos a todo instante e ao final de cada dia estava uma pilha de nervos. Mas J. não tinha jeito: não afastava, não tirava uma folga, não se aposentava.

*

“No final deu nisso”, lamentava a viúva no dia em que foi velado, “De tanto trabalhar, J. não teve tempo nem de gozar daquilo que construiu”. Perguntaram-na como foi que tinha acontecido, e ela, triste, disse que J. andava estressado com sua vida pública havia muitos anos. Na tarde anterior a da sua morte, assim que ele chegou em casa, moído depois de um dia duro de trabalho, quando acendeu seu cigarro habitual, explodiu-se...

3 comentários:

BAR DO BARDO disse...

E isso acontece mesmo... Depois, a fumaça...

O Neto do Herculano disse...

O cigarro é mesmo uma dinamite nas mãos.

silvia zappia disse...

J. era inflamable.
Pobre J!
Pobres nosotros, que también somos inflamables!


me gusta tu blog, volveré por aquí.
beso*