Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 18 de março de 2010

Fugacidade do instantâneo

Um rapaz anônimo desce a Avenida Fioravante Padula ao meio-dia de um dia comum. Enquanto caminha, mecanicamente manuseia em malabares entre os dedos um isqueiro. Com pensamentos em branco, ele deixa sem querer o artefato escapar da mão, que estala num ruído seco ao se chocar no chão duro da calçada. Estica os braços e se curva, abaixando-se para apanhá-lo.


Ele não imagina, mas além da rua e do trânsito tranquilo ao seu redor, além dos transeuntes e latas de lixo, dos casarões e dos postes, além do sol que brilha e da brisa que corre indiferente, muitas outras coisas estão acontecendo por aí, enquanto projeta seu braço para buscar o seu pertence não chão: buzinas ensurdecedoras são ouvidas nas caóticas vias dos grandes centros urbanos; crianças tropeçam descalças nos meio-fios do sinal vermelho, enquanto outras, bem calçadas, atravessam a faixa da mesma rua rumo à escola; viciados escorados por muros ou portas de aço praticam uma alquimia suicida transmutando pedra em fumaça que aspiram; estivadores nos portos do país enxugam o suor da cara sem saberem quanto do sal pertence a eles ou ao mar; automóveis se desintegram em colisões imprudentes por auto-estradas; casais encerram sua última briga antes da separação definitiva; pálpebras são fechadas por mãos de médicos que deram o seu melhor, mas não conseguiram; escalas estatísticas sobem um ponto a cada bala perdida que encontra um corpo para se alojar...


Mal sabe o rapaz que durante o seu gesto efêmero de se abaixar e pegar o isqueiro, muitos outros gestos são praticados em diferentes locais, ambientes e fusos-horário: um ator toma café (expresso) brasileiro em qualquer mesa da Times Square; pré-adolescentes se autonomeiam “Pelé” quando marcam gol em peladas de rua dos subúrbios de Joanesburgo; crianças fazem bonecos de neve no inverno eterno da Rússia; velhas de cento e cinco anos tecem tapetes no Tibet; num jardim oriental, um jovem japonês pede a mão de sua gueixa em casamento à meia-noite e um arquipélago treme na parte do oceano que é dia...


O rapaz não desconfia que o momento em que ele apanha o isqueiro dura o tempo exato para que recém-nascidos deem o primeiro suspiro; para que palavras sejam escritas finalizando poemas; para que olhares se cruzem para nunca mais se desolharem; para que desculpas sejam pedidas, aceitas ou rejeitadas; para que artistas cliquem amontoados de lixo transformando-os em arte. Dura o tempo necessário para que muitas coisas, importantes ou irrelevantes, sejam realizadas. Acontecendo na fugacidade de cada instante como este que se passa na Fioravante Padula.

*

Depois, com os mesmos pensamentos em branco o rapaz continua sua caminhada avenida abaixo, trocando seus passos absortos e alienados como se nada no mundo tivesse acontecido.

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