Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Ventos do leste em fúria

Percebia-se diariamente pelas conversas de rua a falta que ela andava fazendo. Quase que pessoa alguma se lembrava da última vez que a viu antes da sua ausência que já deixava seco o ar da cidade entre nós. Há muito tempo ela se fazia distante, por isso, de certo modo todos já a esperavam. Mas ninguém pensou que sua chegada surpresa seria tão surpresa assim e tão furiosa como foi. Numa tarde, quando ninguém imaginava, a dama de uma chuva sombria chegou e praticamente se desabou sobre tudo.

O que anunciou foram os primeiros pingos, que eram grossos mas esparsos, estatelando duro pelo solo e telhados. Um... em seguida, dois... logo adiante, três... o quarto, o quinto, décimo. Entre essas gotas e o cessar de todas as outras posteriores, seguiram-se apenas uns dez minutos. Ou nem isso (!uma nuvem de proporções fantasmagóricas se acumulando a leste da cidade formando um zepelim gigante em tom chumbo e está lá pelos lados das montanhas entre o Bicudo e o Mirante da Serra a nuvem desprendendo partes de seu pomo que vão rumando sobre casas e ruas num tufo branco que de tão denso se transforma numa avalanche fluida vertical apagando tudo que vai deixando para traz quando passa como um lençol d’água sacudindo-se torrencialmente e tudo por onde cruza o seu caminho há de se ter por milésimos de segundos a sensação de que o mundo está acabando sob relâmpagos que cosem o ar a poucos metros dos paralelepípedos e explodem raios desorientados fazendo com que a cada clarão estalos e estrondos de cataclismos sejam ouvidos sucessivamente com o ribombar dos trovões apocalípticos como se toda a carga dessa torrente que despenca do alto fosse composta por toneladas de dinamites e bombardeios de mosquetes em uma guerra entre céu e inferno conforme a intensidade dos trons que descem do céu estremecendo paredes e vidraças e tudo em jorros de vento que vão e voltam em espirais e ondas invisíveis atropelando latões de lixo e toldos sobre as calçadas retorcendo a copa das árvores e as puxando nos galhos a ponto de arrancá-las pela raiz mais profunda assim como o zinco das coberturas dos prédios sendo rasgado à força de sua estrutura metálica acompanhado das centenas de antenas parabólicas mastigadas pela ventania derradeira que assola a segurança dos pobres mortais aqui em baixo e somado à intempérie enlouquecida desta tarde de verão a tempestade dispara rajadas de granizos incólumes em desordenadas direções que vão se ricocheteando nas portas nas janelas no asfalto na lataria dos carros ilhados e por tudo quanto possa servi-la de para-choque... Rajadas que aos poucos se dissipam, seguindo a extinção dos trovões, e por final a chuva que soltava grãos líquidos em peso quase sólido reduz a um fino orvalho que serena sobre a cidade à medida que o temporal se dilata aos quatro cantos! E acaba).


Devagar as portas foram se abrindo, quando veio a bonança e a população com cara de espanto saía de suas casas para medir os estragos deixados pela dama (in)esperada que passou sem ter pudor ao deixar seus vestígios, presentes nas incontáveis árvores partidas ao meio, nas ruas transbordando-se como rios, nos telhados retalhados e arrancados, nos cabos de alta-tensão remoídos e em tudo que ficou tombado pelo vendaval. Na noite daquele dia faltou luz, mas pelo menos não houve mais sinal de chuva alguma.


Desde então, depois de ter presenciado frente a frente a tempestade de ventos e relâmpagos estilhaçados e de me sentir instintivamente acuado sob esta tormenta jamais vista por aqui, fiquei sabendo o que realmente significa a palavra “fúria”.

*

E é bem pior do que aquilo que eu sempre pensei.

Um comentário:

N. Rodrigues disse...

Esta crônica/ensaio certamente é uma ode ao poeta dos ventos bruscos (rs).

:)