Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Intervalos de solidão a dois

Quando tudo começou, a casa, a pintura da casa, os móveis da sala, os quadros, no começo de tudo isso eles conversavam bastante entre si. Batiam muito papo durante a maior parte do tempo em que estavam juntos. Durante o almoço conversavam, e antes e depois também. Durante o banho conversavam. Até quando trepavam, conversavam, e antes e depois. Falavam sobre o dia cheio, sobre a noite bonita, o fim de semana, o filme... Qualquer coisa era motivo de assunto. E tinham assunto.


Com o tempo o diálogo intenso entre eles foi diminuindo, porque a cada dia chegava uma visita em casa que acabava lhes roubando a atenção. O que aos poucos foi aumentando na mesma proporção em que aumentava a distância entre um e outro.


Ele, após o trabalho, mal cumprimentava a mulher quando chegava já abria uma lata de cerveja e ia se entreter com jogadores de futebol que o visitavam. Outra hora os visitantes eram políticos e homens sérios ou importantes, vestidos de terno. Durante estas visitas, a mulher não ouvia a voz dele.


Ela, após lavar a louça da cozinha, ia folhear uma revista enquanto recebia suas próprias visitas, mulheres que contavam seus dramas, jovens casais com bebês recém-nascidos, senhoras contando sua história de vida. Durante estas visitas, o marido não ouvia a voz dela.


Visitantes na casa passaram a ter presença constante. E eram visitantes de diversos perfis. Ora, pela manhã, chegavam pessoas ensinando à mulher algumas receitas, ou fazendo fofocas de gente que ela conhecia mas que nunca teria contato. Às vezes, à noite, outras ilustres figuras apareciam. Eram poetas falando sobre a vida, pintores falando sobre o mundo, viajantes comentando aventuras no Oriente, músicos dedilhando acordes, enfim, gente de todo tipo, interessante, bonita ou chata. Curioso é que durante as visitas, o casal quase nunca (se) falava. Apenas ouvia com cortesia o que os visitantes tinham a dizer.


Ambos estavam vivendo, em suas horas de folga, quase que exclusivamente para as visitas. Tanto que no final de uma tarde, quando uma colega de trabalho da mulher a convidou, ela e o marido, para saírem na sexta à noite, ela respondeu que “sexta não dá. A partir das dez receberemos em casa a visita de um grande ator que nos falará sobre suas peças”. E na sexta-feira receberam mesmo a visita.

*

Numa noite, quando a mulher preparava o lençol para ir se deitar, o marido, lendo jornal na sala, perguntou quando não ouviu mais nenhuma voz pela casa: “suas visitas já se foram?”. A mulher, entre um bocejo e uma alongada de braços, respondeu: “não. Apenas diminui o volume da televisão”.

Um comentário:

Miréille Almeida disse...

Nossa, Farley!! Isso deve acontecer em 7 ou 8 de cada 10 lares do mundo.
E o que me diz de relacionamentos que já começam sem palavras?? Onde vão parar...
Esse seu texto me fez pensar onde estarão as letras, que já não formam mais uma frase completa.