Blog de Farley Rocha

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

As flechas de São Sebastião

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Em todo dia 20 de janeiro a Narbonna romana onde nasceu Sebastião parece ser aqui, nesta pequena província no meio das montanhas do leste.


Desde os tempos em que os vales à beira de toda a encosta da Serra do Caparaó eram chamados pelo Império de “zona proibida”, lá pelo final do século XVIII, quando os aventureiros, junto com garimpeiros, madeireiros e a estrada de ferro vieram e fundaram a cidade, é que os ares desse lugar longínquo são protegidos pelo olhar de Sebastião.


Com os desbravadores, os homens de fé também chegaram e da primeira cruz que fincaram numa pequena colina, os antigos construtores devotos ergueram a primeira igreja: a Igreja Matriz de São Sebastião. E é do alto de sua torre abrupta que ele nos vigia, sobre as árvores da Alameda da Praça Dr. José Augusto.


Nesse dia Sebastião vê lá embaixo pelas ruazinhas a manhã que surge junto com os madrugados velhinhos que vão sem pressa à padaria. Também vê os bêbados que ressonam sob o gramado dos canteiros da praça e os cães que lhes fazem companhia (também dormindo profundamente).


Sebastião não vê nem ouve as portas de aço das lojas serem abertas nesta manhã, porque sabe que por aqui é feriado hoje. Então ele olha ao longe buscando imagens mais distantes, no pirineu do Morro da Major Pereira: vê uma criança penteando em vão os cabelos de uma boneca suja e pela janela da casa humilde, que deve ser a sua, vê uma jovem, que deve ser sua mãe, passando um café torrado à mão. Entre outras casas e casebres, vê uma que também lhe chama a atenção: nesta tem um modesto altar próximo a televisão, forrado com uma malha de crochê, onde há um copo d’água (sem água), uma bíblia com as páginas atrapalhadas pelo vento e uma pequena estátua de Sebastião. Mas não vê nenhuma vela, nem mesmo apagada.


Ao longo desse dia, seu olhar vai esticando por aqui e ali, dobrando esquinas, acompanhando passos por calçadas ensolaradas. Vê as casas e casarões do Centro, dentro delas seus moradores entediados e indiferentes ao dia, “é feriado, e daí?”, devem pensar.


Vê casais, carros e bicicletas passeando, rondando os alicerces do Morro da Matriz e em nenhum rosto ou voz o Padroeiro consegue perceber nenhum gesto de reverência. Vê pessoas transitando perpendicularmente sobre a cidade que lhe da abrigo, pessoas que o veem (ou não veem) como simples anônimo entre tantos outros. Quase um Sebastião sem nome.


Mas é no final dessa tarde que um olhar distinto e inesperado lhe surpreende. Em frente à praça da Prefeitura Muncipal, onde garotos bebem energético com whisky, um destes olha para a imagem no oratório da torre da igreja quando o sino badala as seis horas, e diz:


– Hoje é dia de São Sebastião, não é?...

*

Sebastião, contorcendo-se entre o zunido do bronze do sino e suas flechas atravessadas nas costelas, pensa: “enfim, alguém lá embaixo se lembrou!”.

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