Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Zona Proibida

  
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Espera Feliz é autêntica ao retrato que tem. É cidadezinha serrana com ventanias repentinas no meio do dia e passarinhos no fio dos postes. Aposentados tomam a fresca em banquinhos nas calçadas.

Pelo vale do rio São João e suas curvas, ela está lá anônima entre montanhas, quase uma vila longe de tudo, afastada de quase todos. E nas encostas ao redor do vale há uma casinha, solitária à beira da mata, com terreiro de terra vermelha e fumaça saindo da chaminé.

Na casa vive seu Antonio, o velho prosador de causos.

Sob seu chapéu desbotado, enquanto esperava a água ferver no fogão a lenha, narrava sobre como a civilização chegara até a Serra do Caparaó, lugar de onde seu Antonio, depois de nascido, nunca saiu.

Contou que, durante o século XVIII, a região fora descoberta pelos contrabandistas de pedras preciosas. Na época, vindos de Vila Rica, utilizavam o território como rota clandestina e cruzavam os píncaros das montanhas do leste rumo às planícies capixabas até o litoral. Neste período, esta parte de Minas era chamada pela Coroa de “Zona Proibida”.

– Uns duzentos anos atrás, – continuou – foi a vez dos primeiros exploradores chegarem a essa terra fria. Eram caboclos vindos do sul e do oeste, colonizando todo palmo de chão que viam pela frente.

Serviu-me uma caneca do café forte e escuro recém-preparado (era seu Antonio mesmo quem colhia, processava e torrava os grãos).

Disse que os gringos vieram depois, por volta de 1880. Talvez atraídos pelo clima, imigrantes italianos e alemães foram adentrando serra acima, habitando suas falanges rochosas e seus grotões. Extraíam madeira e criavam gado e cultivavam lavouras infinitas de café. Como se vê ainda hoje pelos mares esverdeados ondeando as colinas.

Posteriormente, com a expansão mercantilista no país, a chegada da ferrovia traçou cortes em morros, pradarias e pedreiras pelo sopé das encostas, no início do século passado. E consigo trouxe, além dos pesados vagões de ferro, a promessa do desenvolvimento.

Seu Antonio encheu novamente nossas canecas e começou a enrolar um cigarro de palha. Deu duas tossidas cansadas e prosseguiu:

– Aí, nesse mesmo tempo, vieram os tropeiros. Tinha mês que passavam cinco caravanas com punhados de homens montados a cavalos, burros e jegues de carga. – Contou que quando jovem, quase foi embora com eles: “queria rodar meio mundo”, dizia.

Também se lembrou dos ciganos. Antigamente, a mesma tribo passava por Espera Feliz pelo menos uma vez por ano. Fincavam tendas nos terrenos vagos quando a cidade não passava de um povoado e vendiam tachos de cobre, serrotes, tecidos de renda, seda, cordões de ouro e prata... ou trocavam tudo pela barganha de sacos de arroz, feijão, fubá e galinhas caipira – seu Antonio por pouco também não partiu com os ciganos; mas casou-se antes disso.

Disse ele que bem depois, lá pelos anos 80 e 90, vieram os hippies e andarilhos, atraídos pelo isolamento do mundo entre as cordilheiras e florestas de mata atlântica. Construíam chalés rústicos às margens de cachoeiras primitivas ou apenas passavam por aqui em Kombis amarelas flower power, partindo logo depois sem deixarem nenhum vestígio (com os hippies seu Antonio não cogitou partir; não por falta de vontade, mas já havia passado da idade).

Perguntei mais sobre a Zona Proibida. Se a história que conhecia fora contada pelas gerações dos seus antepassados, desde os ancestrais desbravadores...

Depois de acender o cigarro de palha, seu Antonio respondeu no intervalo entre duas longas pitadas:

– Não. – disse ele – Outro dia pesquisei sobre isso na internet.

Acho que seu Antonio já não quer mais rodar meio mundo. Porque agora o mundo inteiro pode girar ao seu redor.


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