Ao longo da avenida Fioravante Padula, desde o centro velho até próximo ao antigo Capelão, blocos enfileirados de gente se aglomeram de forma ordenada. Grupo após grupo. Cada pelotão uniformemente representando suas escolas, comunidades e entidades locais. Estão a postos para o início da parada. Em um dos pelotões um apito forte e alto sibila em códigos. Um bumbo é porretado exprimindo surdo e isoladamente três batidas consecutivas. Acompanhadas de uma sequência acelerada de taróis. E uma explosão de muitos sons acontece. Todos põem-se a marchar com a marcha marcial fazendo lembrar o dia da independência. Descem a avenida central. Multidões em ambas as calçadas assistem.
Com o mesmo ritmo marcial, num ponto anônimo da cidade, um rapaz sentado à cama olha para um retrato entre as mãos. Uma mulher que na foto sorri. Os olhos dele submergem numa inconsciência profunda e se perdem em algum canto escuro de qualquer lembrança. Seus lábios tremem, e se contraem.
Na zona norte, um outro anônimo cujo nome talvez nem faça questão de se lembrar, levanta de sua cama e caminha pelado até o banheiro. Enquanto mija espumando a latrina, olha de forma paralisada para um canto qualquer do piso, como se não fizesse parte daquele corpo nem lugar.
Em outro lugar, o silêncio tênue no corredor do hospital favorece que alguém em um de seus quartos mergulhe numa dimensão de descrições impraticáveis. Ele e só é quem pode ter a noção exata do que acontece. Os olhos estão virados para o teto. Pálpebras semicerradas. Um oculto lugar e sua leveza do ser.
O desfile vem cortando a cidade como um rio de gente e deságua nos gramados do Estádio Municipal, com todos os pelotões se alinhando lada a lado, frente a banda que inicia suas últimas batidas. As trombetas atrás dão o sinal de finalização da performance patriota. Os taróis aceleram acompanhados pelas marcações dos surdos. O bumbo e a caixa colidindo suas harmonias embrutecidas. E um sibilar de apito encerra totalmente as batidas.
No hospital, também encerram-se as batidas de um coração. Fecham-se totalmente os olhos absortos e a leveza o leva, tranquilamente.
O jovem sentado à cama decide levantar-se. Abre bem os olhos e põe o retrato numa gaveta, com a intenção de nunca mais olhá-lo. E sai pra dar uma volta, sorrindo imitando alívio.
Depois que se balança sobre o vaso, o sujeito nu dobra-se ao chão para onde olhava e pega um papelote. Num sorriso de superioridade abre a embalagem e entorna o pó branco na privada, como uma chuva de sal estourando as bolhas na água amarelada. Dá descarga e vira-se confiante de sua escolha. Pela primeira vez não se arrepende. E diz seu nome em voz alta.
De certa maneira a independência talvez tenha mesmo se cumprido. Pelo menos neste dia, para alguns.
Um comentário:
O que foi feito de ti, caríssimow
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