Fato é que a crônica sempre foi um gênero incerto. Por mais que os eruditos formulem fórmulas e formas, eu, ingênuo literato, a encaro como sendo um tipo de texto aberto, livre, como é o poema de verso livre, sem amarras configuradas ou qualquer. Escreve-se uma crônica em forma de diálogo, ou em prosa apenas, ou em poesia, ou narrando, ou, quando o assunto é vazio demais, tece-se uma com palavras parecidas com milhares de reticências entre parênteses. A crônica é então um formato de texto que se faz como quiser, do jeito que quiser. Mas, não obstante, não se escreve uma sem que haja de antemão um tema.
E quando o “tema” ou o “assunto” não vem? Daí se recorre à forja de uma idéia possível, maquina-se uma cadeia de verdade para se contar, mesmo que constituída por muitas lorotas. Inventa-se portanto um acaso. Comenta-se o que, na prática, dispensa comentários. E é aí que o cronista mente com propriedade e supremacia.
Nesse escuro da escassez de pensamento, o cronista sai desvairado a acender interruptores, velas, lamparinas, postes, refletores ou fósforos, a fim de que recaia sobre si uma luz capaz de conduzi-lo entre parágrafos, vírgulas e uma meia dúzia de palavras que venham à cabeça até o final do túnel (digo, do texto).
Na tentativa de clarear algo sobre o que escrever, nós, os cronista de meia-tigela, saímos pelas ruas emolduradas de realidade ou entramos para dentro de nós mesmos (ambiente, aliás, povoado por ilusões). Assim, de alguma forma chegamos à luz das ideias, embora muitas vezes ela irradie opaca e quase sem brilho.
Eu por exemplo, quando o percalço da escassez temática me assola (não raro), utilizo basicamente três procedimentos para achar um motivo textual.
O primeiro: dirijo-me até a rodoviária da cidade. Chega a ser lugar-comum dizer que este local é uma verdadeira confluência de ideias vivas, que acontecem simultaneamente e em tempo real. É igual em qualquer rodoviária de qualquer cidade do planeta. Ali posso observar os sorrisos de quem chega e o choro de quem parte, o tédio nos olhos de quem espera e os beijos e abraços de quem não quer ir, o perfume adocicado das moças e senhoras elegantes e o cheiro forte de mijo que sai do banheiro masculino. Dois minutos numa rodoviária, há de se obter assunto suficiente para redigir uma crônica (da última vez, fiquei duas horas no terminal e não consegui escrever nem uma palavra).
Caso não dê certo, utilizo o segundo procedimento: recorro às origens factuais de uma crônica, misturo jornalismo com ficção. Procuro me lembrar de algum ocorrido que esteja em destaque. Recordo-me que, à época, a morte do Michael Jackson rendeu boas crônicas por aí, assim como a presença da Madonna na Sapucaí durante os desfiles de carnaval, ou o show dos metaleiros do Iron Maiden em Belo Horizonte. Cá pra nós, penso que esta modalidade de crônica é a que se aproxima mais de seu formato autêntico, algo que não é nem notícia, nem literatura. Dois minutos refletindo sobre um acontecimento qualquer, há de se abstrair um bom assunto (confesso que refleti por dois longos dias e nem uma linha sequer).
Quando nenhum dos procedimentos dá certo, aí apelo para este terceiro: recorro aos dicionários. Qualquer dicionário é basicamente um banquete de ideias e possibilidades para tal. Cada vocábulo com suas definições e descrições oferece um rumo para os pensamentos arredios do cronista. Para se ter uma noção clara do que digo, basta ler uma única página deste livro salva-vidas e saberá quantas sugestões de ideias e de variados temas estão contidas ali. Cada palavrinha é um contexto à parte. E, sem exageros, o dicionário inteiro é praticamente uma enciclopédia de assuntos e conceitos. Folheando um por dois minutos apenas, há de se encontrar algo interressante para escrever (li duzentas páginas, da letra A a C, mas nada me veio à mente).
Daí quando esse meu passo a passo não funciona, o jeito é pensar por dois minutos em um monte de besteiras que vou escrevendo desembolado na forma que me vem à cabeça. Depois, com a cara mais lavada do mundo, finjo que o resultado final do texto redigido é uma crônica.
*
Igualzinho a esta que você acabou de ler, nos últimos dois minutos.
4 comentários:
Pois é, meu caro, vim tarde, mas não pude deixar de vir.
Como eu poderia alimentar a indiferença diante da adorável e gentilíssima mensagem que deixastes em meu canteiro virtual?
Há poucas coisas nesta vida que me alegram tanto quanto encontrar gentileza, seja num gesto, num verso, ou num scrap de um estranho que nem nem é mais tão estranho assim; um estranho que pelo menos eu sei de onde vem, e que espero que nunca se vá por mais tempo do que o suficiente para subir e descer as montanhas do leste.
Eu sou um útero vazio repleto de poemas, se é que você me entende. Se sou Clarisse, Adelia, Cora, Cecília, Fernanda ou Marina, eu sinceramente não sei, mas sei que sigo grávida de mim mesma e insisto em transbordar em versos.
Por isso, obrigada pelos seus votos, pela sua torcida, pela sua atenção e, acima de tudo, pela sua gentileza.
Um abraço apertado! E até logo,
Nicole
Muito legal. xD Hahahha.
Vi o contato via e-mail agora a pouco. Resolvi parar pra ler, já que é algo que tenho feito muito ultimamente. Estava falando sobre esse "forjar textos" com um amigo. E ele discordava veementemente de que um escritor é capaz de tirar do nada um texto, ao ponto de fingir sentimentos que não sente. E nem por isso esses sentimentos "falsos" perdem sua legitimidade, sua verdade, sua força.
Até a próxima,
André.
Olá, Farley! Parabéns pela crônica!
Seus textos prendem a atenção do leitor de tal forma que é impossível não seguir até o final...!
Sucesso!
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