Blog de Farley Rocha

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Não vire a página (CRÔNICA)

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Na Biblioteca Municipal da Casa da Cultura, a senhorinha bibliotecária desvia um olhar preocupado para os lados. A sua frente o rapaz de óculos de grau e boné colorido mostra os dentes sob o bigode ralo de adolescente num sorriso acanhado de pausa na conversa. Enquanto repara seu próprio reflexo no monitor do notebook sobre a mesa, houve a pergunta insegura da bibliotecária: “mas e agora? O que vai acontecer com isso tudo?”.

A duas mesas dali, interrompi a leitura do Leminski em minhas mãos quando ouvi o desfecho daquela discussão contida como sussurros que sempre se nota num recinto público e de silêncio, como é aquele. “Parece que a tecnologia é uma conseqüência, e quanto a isso nada se pode fazer”, opinou o rapaz. “Por mais que minha alergia não passe”, a lamentação da senhora, “já trabalho nesta biblioteca há tantos anos, que sinto no cheiro destes livros todos uma parte de mim mesma. Não me acostumaria a uma vida fora do alcance desses impressos. Até os que as traças já fizeram caminho, pra mim são como peças de um maravilhoso jogo imaginário. Pensar que o papel com sua cor envelhecida e seu cheiro de tinta pode perder lugar prum ‘livro de computador’ me deixa, no mínimo, aborrecida”, desabafou corriqueiramente aquela dona simpática de cabelos grisalhos (que depois de ouvir seu depoimento sincero, ganhou de mim a alcunha de “Guardiã dos Livros”).

Fingindo ler os poemas do paranaense, fui longe: “é mesmo? E agora?”. Abre-se parênteses para uma hipótese bastante possível: em pouco tempo, volumes digitais seriam carregados dentro do bolso, podendo conter centenas de obras em espaços megabites. Seria possível estar no Machu Picchu fumando um cigarro sob o vento da cordilheira lendo éclogas de Camões e, dois minutos depois, baixar um romance de algum escritor promissor lançado na web há poucas horas atrás em Cingapura. Não haveria distância entre texto e leitor que pudesse servir de justificativa para o “não hábito da leitura”.

Este tipo de acesso à literatura proclamaria então um novo jeito de consumir esta cultura, e disso nenhum de nós sairia impune. Seríamos todos pegos de surpresa por este canal analógico do sistema virtual, mesmo que o boom da literatura digital já tenha tornado essa realidade quase comum. A ficha cairia e nós, atônitos, não saberíamos lidar muito bem com este tecnológico formato.

Nos sentiríamos retrógrados ao saber que viemos de uma geração narrada a palavras cravadas no papel, e isso soaria nostálgico ao ler Charles Perrault digitalizado para nossos netos.

Como se não bastasse, todos os livros que existem sobre a superfície do planeta seriam apenas depósito de poeira e serviriam somente para entulharem depósitos. As bibliotecas perderiam seu sentido prático de leitura e passariam a simples conceito de museu. As livrarias teriam de se adaptar a comércios de softwears e pendrives literários. Em cafés de Paris, Amsterdã e Rio seria natural encontrar, embutido nas mesas, aparelhos com tela de LCD, onde, com sensores de tato, você escolheria o título que quisesse ler enquanto tomava o capuccino. A expressão “livro de cabeceira” seria substituída por “e-book de cabeceira”. E é aí que haveria a grande resistência à Revolução Digital.

Num ataque de conservadorismo terrorista, os poetas, escritores, intelectuais e jovens aspirantes de toda parte se rebelariam num manifesto contrário ao novo mundo. Para mostrar a importância do formato impresso, chocariam a todos arrombando bibliotecas públicas e ateando fogo nas prateleiras. Lançariam coquetéis molotov por suas janelas e empilhariam milhares de exemplares de Drummond, Bukowski, Guimarães Rosa, Kafka e Machado de Assis pelas avenidas em dias de chuva. E os que não fosse possível queimar ou rasgar, jogariam ao mar. Mas no final, nada disso adiantaria, porque sem que estranhássemos, a realidade dos livros digitais estaria incorporando, aos poucos e sem muito alarde, em nossos hábitos culturais: fecha-se parênteses (aqui) para uma possibilidade bastante hipotética.

Pelo discurso da senhora bibliotecária, ela deve temer que em qualquer dia desses, ao virar a próxima página de algum título preferido, poderá encontrar uma tela retangular acionada a energia recarregável, escrita nela “Capítulo Um”, depois de apertar a tecla enter do apetrecho eletro-literário no lugar do livro.
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Nisso, volto meus olhos para a antologia de Leminski e continuo minha leitura. Antes que alguém decida queimá-la de uma vez.

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