Blog de Farley Rocha

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Passagem Caminhante (CRÔNICA)

Seu olhar breve e ao mesmo tempo longo lembrava de longe um pouco os olhos de George Harrison. Quando sorria, sorria por inteiro, sorria-se e seu rosto, olhos, cabelos sorriam juntos. Da garganta um som grave, porém baixo, como se um trovão malandro com preguiça de trovejar. Caminhava com pés abertos. Arrastava chinelos, e braços tão soltos como se desordenados. Mas caminhava com gosto, sentindo o gosto dos quarenta e cinco anos de degustação pela vida; quantos cafés, sucos e outros adoçaram seus passos pelos lugares que pisou? Pelo esôfago, quantas marcas de aguardente não sapecaram? Suas mãos, quantos cumprimentos, quantas cores de epidermes já tocaram, quantos abraços em seus braços lhe confortaram ou confortaram-se? Afetos, talvez... Amores? Quem sabe?

Veio vindo de muito, e há muito por aqui se acerta como dá. Outro dia pronunciou a frase: “comer: por obrigação; beber: por prazer”. Não se via em seus dedos guardanapos engordurados, garfos ou faca. Como um saco vazio se sustentava de pé apenas pela emoção de experimentar. Estava aqui não para ser lembrado, mas para ter vivido.

Erudito dentro dos conformes, culto popular extraído do meio das civilizações urbanas, rurais e undergrounds. Falava de música, mecânica e até conhecia alguns poetas. Da política comentava o que se aprendia no Jornal Nacional. Com ironia a toda hora, um sorriso escapava-lhe das dentaduras. Contudo, era um camarada articulado. Quando a coisa apertava, sempre sobravam-lhe de algum bolso alheio as moedinhas, que eram cuidadosamente empregadas por ele em gavetas de balcões velhos de madeira manchada por catuaba e cerveja e com as laterais queimadas por pontas de cigarro. Entrava sério. Saia como se as nuvens fossem seu solo.

Numa hora, parou frente à igreja, era manhã e o sol quentava a alma. Entrou. O padre só o chamou pelo nome. Ali não buscava nada. Apenas se esclarecia. Perguntou ao padre algo sobre o destino. O sacerdote o olhou, apontou para a imagem de Cristo pregado na cruz sobre o altar e lhe contou uma parábola dessas menos conhecidas. Ao final pediu a benção ao padre e foi saindo. As primeiras beatas chegavam. Não quis esperar a missa. Quando saía, disse ao padre que o destino o chamava e sorriu, serenamente.

Na noite daquele dia e em tantas outras noites ele se aquecia com os braços cruzados e suas conversas sobre os fatos corriqueiros, sobre histórias de Belo Horizonte e Juiz de Fora. Bastavam-lhe um par de ouvidos e uma porta de bar aberta para ser um homem feliz.

Quanto ao trabalho, se fazia por assim dizer pela necessidade. Não que já tivera em algum tempo uma carteira assinada.
Viver, sua mais bela obra-prima. Um tesouro que guardava até quando um último brilho lhe escapasse.

Um comentário:

Anônimo disse...

Liberdade!
Quantos conhaques numa só caminhada,
Quantos tropeços Quixotescos em lençóis amarelos;
numa verdade tão pura contada
e desprezadas pela "lindura"
um grande Forrest Gump sem identidade !!!!

Paulo Erenio