Blog de Farley Rocha

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Falando sobre céus, montanhas e mar (CRÔNICA)


Uma coisa que sempre achei muito interessante é o céu. O céu da noite, por exemplo, é fascinante, diria até intrigante, pois nosso espaço mental não comporta tamanha visão interestelar, nossos olhos se perdem junto a escuridão do universo desconhecido e levam consigo o imaginário, entre todas as milhares de estrelas que podemos alcançar. Mas há também o céu do dia. Esse, menos cheio de detalhes, mas repleto de fascinação desde o azul sugerindo uma sensação de leveza na alma até o contraste de um azul degradê ao pôr-do-sol com o verde do campo ou das montanhas.

Tornei-me um explorador dos mistérios do céu do dia na praia, em Piúma ou Guarapari, quando estive lá pela primeira vez, moleque. No litoral, com uma cor que varia intensamente durante a manhã e a tarde, ora com um tom acinzentado, ora azul anil, ora azul marinho tão forte raspando um esverdeado, reparava no céu a sua dimensão, que ia de onde beirava o topo dos prédios pela orla, até aonde a vista perdia o mar. Lá no fim, céu e água se encontravam. As duas tonalidades tornavam-se unicolor. Aquele lugar que não tinha fim levava o tamanho do céu. Bem diferente daqui. Em cidade serrana como esta, o céu que vemos é pequeno, embora as colinas e montanhas que circundam o perímetro urbano dão a impressão de serem o sustentáculo do teto de céu sobre nossas cabeças quando olhamos daqui debaixo. Magnífico. Mas no céu visto da praia o enigma é maior. Sua dimensão ultrapassa o alcance da visão. Com ou sem nuvens, o céu da praia é o limite.


Assim pensava sobre o céu do dia, o céu da praia, o céu que não me impunha regras para a minha abstração tão fértil como raciocínio de criança. Porém, há pouco, fui tocado por um outro tipo de céu, ou melhor, quase toquei o céu num esporádico e intenso amanhecer de um domingo, porque estava no alto de uma montanha, um pico no meio de um conjunto de cordilheiras nascido numa era bem distante. A ponta de solo mais alta do sudeste do Brasil. Lá redescobri o céu, o presenciei sob uma outra perspectiva.


Embarquei com alguns amigos numa expedição ao Pico da Bandeira, na Serra do Caparaó. Era sábado e perto das quatro horas da tarde chegávamos ao acampamento da Casa Queimada, último ponto de onde se vai de automóvel. Isso depois de subirmos toda a serra da Forquilha do Rio, no Patrimônio de São Raimundo, antes do Parque, e passarmos pela portaria, mostrando nossos documentos e recebendo a guia de licença para entrada carimbada pelo guardinha da guarida. Na van, a moçada ouvindo música e fazendo farra.


Armamos o “camping”: barracas, colchões infláveis, lanternas e macarrão instantâneo no fogareiro a álcool. E a noite, aos poucos, caindo sobre o grande vale ao nosso redor. Toda a cordilheira que cerca o local do acampamento, alta e semelhante a uma muralha imponente, com pontas de rochas e sua estrutura colorida por um verde escuro da vegetação rasteira, entre os pedregulhos, o frio e o ambiente inóspito, tomava uma coloração escurecida, e rapidamente o negrume noturno predominava.


Junto com a noite, vinha também o céu cheio de estrelas, e com elas, brilhantes e incontáveis, vinha também o frio que, às seis e meia da noite, já beirava os dez graus. A sorte é que nesses lugares sempre rola ao menos um violão, para distrair do frio e compor um ritual sonoro ao fundo de apertos de mãos, troca de idéias e pequenos laços provisórios de amizades, entre as pessoas que vão ali e que nunca se viram.


Entre uma música, um papo, um conhaque e um cigarro, sempre havia pairando no meio da penumbra uma pergunta surgida por falas abafadas vindas de dentro das barracas – “a lua já nasceu?”. Era início de minguante, mas ela ainda estava quase que redonda. Por isso, a nossa espera por ela, como turistas, se comparava a espera de um público em um concerto de rock aonde cada minuto é contado ansiosamente para o início do show.


E de fato o seu surgimento foi um espetáculo. Na parte leste da cordilheira, próxima a duas grandes rochas apelidadas de Duas Irmãs, avistamos uma imensa linha clara desenhada rente a vertente entre uma ponta e outra da montanha. Nove e vinte da noite. Todos esperam atenciosamente pela sua chegada. A linha de luz, que antes era só uma fresta, agora toma ares de uma explosão em câmera lenta. Em seu centro há uma bola branca incandescente, que a cada vez cresce um pouco mais. Todos os olhares atentos. Mãos nos bolsos. A direção de todas as cabeças é a mesma. Por de trás da cordilheira ela estoura. Rompe-se a lua infinita como se houvesse rasgado o alto do penhasco escuro. Surge jorrando lavas metafisicamente alvas de luz sobre todo o vale. Na medida em que ela vai se demonstrando, as sombras das montanhas vão se recolhendo. É mágico e ao mesmo tempo vertiginoso. Um imenso cenário surgia com a forte luminosidade daquele holofote natural. A nossa esquerda o Pico do Cristal se revelava despontando-se com o clarear das trevas. Ao mesmo tempo, no céu só iam restando as estrelas mais fortes. As menos intensas não resistiam a imperatriz lua que acabava de recriar o espaço. Após o espetáculo da lua na sua transição de fases, como já era de se esperar uma salva de palmas, meio abafadas pelas luvas de lã, foi dada, acompanhada de assovios e elogios do pessoal: “lindo!”, “maravilhoso!”. O show daquele satélite-astro durou apenas alguns poucos minutos, mas o suficiente para fazer o violão, que já estava nas mãos de alguém, ressoar sua música de uma forma bem mais diferente. Bem mais poética.


Tempos depois, aos poucos, os poucos que dormem em suas barracas geladas vão acordando, no virar da madrugada, para arrumarem os utensílios que irão precisar durante a caminhada, prestes a dar início. Meus biscoitos, vitamina de caixinha, pães e uma lata de atum estavam na mochila. Um cantil na cintura e uma skilse presa na alça da bolsa, já cheios d’água. Touca, cachecol e luvas. Lanterna a postos. Grupo reunido. Duas e dez da manhã, em ponto. Damos início a caminhada pela trilha acidentada. Pedras. Buracos. Pedregulhos. Subida, subida, subida. Muita subida. Dali em diante, aproximadamente quatro quilômetros estavam a nossa espera, prontos a nos engolir por todos os seus cumes, kennions e grotões. Volta e meia um gole da água que parecia ter saído do freezer. Um chiclete na boca e o arfar de todos nós montanhistas que já suávamos as roupas à cântaros, devido a forçosa escalada, obrigando-nos a retirar casaco a casaco.


Além de olhar ao redor, avistando longínquas cidades e cidadelas, sinalizadas por suas luzes, àquela distância minúsculas, o céu mais uma vez se revelava, agora como um grande painel de uma pintura universal. O fundo negro, a imensa lua em manifesto aural. Entre os corpos astrais, a constelação de escorpião dividia as abóbadas celestiais como se um gigantesco aracnídeo estivesse pintado por pontos cintilantes em um deserto negro infinito. Estrelas cadentes também passavam, contrastando com todas as outras coisas. Mas antes do céu, havia o Pico do Calçado, bem acima de nós e bem diante de nossas caras de cansados. A luz da lua indicava a abrupta escalada que teríamos de fazer entre pedras e erosões. Também assinalava os paredões rochosos da montanha, estampando sombras extravagantemente surreais espalhadas por todos os desfiladeiros. O enorme monte que tem a silhueta de um sapato de gigante ganhava as nossas pegadas e também arrancava de nossas testas riscos de suor, mesmo sob uma baixa temperatura dos ventos característicos das montanhas. Mas do suor brotava a determinação porque sabíamos que após a sua subida já veríamos o nosso objetivo a nossa frente. O grande Bandeira.


Dando a mão ao companheiro de trás em pontos mais difíceis, rompemos o cume, e de lá seguimos pela vertente em linha reta, quando a lua já estava longe e o céu dava sinais de dia chegando. Mais quarenta minutos de uma caminhada, literalmente “àquelas alturas”, fadigada, chegamos ao pé do pico mor. Olhando para uma das trilhas de acesso bem mais abaixo de onde estávamos, uma fileira de lanternas sacudiam por quase mil metros ao longo do último trajeto íngreme, como uma procissão de vaga-lumes em pleno despertar daquele inverno. Mais alguns metros de escaladas pelas rochas em blocos despadronizados, chegamos aos seus 2.892 metros. Exaustos, com fome e com muito sono. E antes de sentirmos o frio ultrapassar os agasalhos, sentimos o alívio por estarmos ali. Por termos chegado. Não havia mais nenhum topo a subir. Não havia mais nada sobre nós além do universo. Quase cinco horas da manhã. O próximo espetáculo estava previsto para às seis e vinte em ponto, o nascer do sol.


Os pés estavam gelados, assim como todo o resto do corpo que tremia até a alma. Porém, as horas passavam e as estrelas sumiam. O céu do término da noite azulava extraordinariamente de um lado, enquanto o outro permanecia escuro, como se o dia, que já era domingo, fosse empurrando a noite de sábado para o oeste. Sabia que o sol dali a pouco surgiria e o frio iria passar. Mesmo o sol passaria, como aquele domingo, aquela expedição etc., mas ficaria a lembrança, forte, viva e marcante.


Em meio a todo o resto de pessoas comuns metidas a aventureiras que ali estavam com o mesmo propósito, ficamos espalhados, por grupos e por ordem de chegada, pela superfície desregular do cume da montanha, sentados ou deitados, enrolados em mantas ou cobertores, entre as várias rochas tentando achar um local seguro contra os ventos perturbadores e gelados àquela hora. Mas todos se preocupavam, antes de mais nada, em escolher um ponto que fosse privilegiado o bastante, e dentro daquelas possibilidades de conforto, para assistir ao belo espocar do sol no horizonte onde repousava um filete quilométrico de nuvens brancas, amareladas um pouco em um determinado ponto, onde, minutos depois, surgiria ele.


O lugar, acostumado apenas com o barulho do vento e no máximo com o trovejar de um relâmpago em seus dias desabitados, agora difundia por todos os lados do seu chão várias vozes. Mas rapidamente o som das vozes foi se apagando quando o horizonte foi se acendendo e por instantes o Pico da Bandeira se tornou novamente solitário de sinais de civilização, mesmo carregando toda multidão em seu topo. Silêncio. Vento, vento. Olhares. Respiração cuidadosa. Piscares cautelosos, atentos. “É agora!” gritou um. “Olha, olha lá, cara! Tá vindo!” empolgava-se outro despertando o entusiasmo de todo mundo. Por trás das nuvens pardas, vermelhas, amarelas, brancas, de todas as cores agora refratadas perto do crepúsculo, deu-se à luz o sol. Veio como se furando a extremidade do planeta e a borda do céu. Pus os óculos escuros. Surgiu em vermelho intenso, como se suas explosões nucleares fossem tochas rubras de neom. Ao redor do pico, uma ramificação de cadeias de montanhas rochosas e despontadas se manifestava num tom ocre. De opacos, nossas roupas, nossos rostos, nossas toucas, nossos olhos apertados foram tomando um banho de raios solares e ganhando um brilho dourado. Ali, éramos os primeiros a amanhecer entre milhões de pessoas espalhadas por todo o mundo lá embaixo. Era uma visão rara, um visual desses que só temos o privilégio de ver algumas vezes durante a vida. Estar ali significa estar dentro do mundo, como parte e não como um sobrevivente, do qual não há chances de sair sem levar a sua marca guardada apenas nas fotografias digitais. E eu estive no centro disso tudo. O visual foi passando, mas por aqueles instantes viajamos longe olhando para o núcleo da nossa galáxia. Incrível. Logo o dia se consolidou. Retornamos de nossa viagem novamente à Terra, onde vivenciamos a paisagem monstruosa de um Caparaó visto de cima.


Com os polegares presos nas alças da mochila, comecei a dar um giro de 360 graus ao redor de mim mesmo e daquele dia recém-nascido. Nesse momento, assisti o céu se despir para mim. Agora sabia de toda a sua verdade olhando para ele em sua forma integral. Canto a canto. Vi todas as direções da sua borda tocando a circunferência do solo terrestre como se formasse um gigantesco círculo, lá no horizonte sem começo ou fim. Azul profundo em tonalidades claras entre os buracos de esparsas nuvens a milhas dali. Hipnótico...


E foi assim que vi pela primeira vez o céu da terra maior que o céu do mar.

Um comentário:

Yuri disse...

Fantástico relato! Parabéns!
Trouxe um pouco da sensação que só quem já esteve no cume de uma montanha pode ter.